segunda-feira, 3 de março de 2008

Casa, silêncio, cigarros inexistentes e espera...



...

A casa, silenciosa. Paredes conspiram: seriam cúmplices da solidão? Desde quando já parara o relógio de girar em sua rotina? Não havia tarefas a cumprir, e tampouco havia resquícios do sol da tarde que nunca fora... a ausência de vozes dá medo!

O pequeno garoto imagina poder olhar para os pés que aparecem sob a manta xadrez de lã. Encara resoluto as ranhuras da unha do dedão esquerdo que não pode ver. Estaria suja, provavelmente mal cheirosa como o banheiro mantido fechado para que os gatos não entrassem durante a noite.

Seriam seis ou sete? Não importa, não conseguiria lembrar-se de todos os seus nomes – e talvez isso porque nunca tivesse parado para ouvi-los. Nunca conversara com gatos! Mesmo assim, vez ou outra, atrevia-se a enfiar suas frágeis mãos nos pêlos daqueles furtivos animais. Não sabia porque o fazia, se ele mesmo não gostava de gatos, se nem ao menos os queria ter por perto.

Nada disso importava... Bastava saber que, durante a madrugada, os tamancos dela agrediriam os azulejos do corredor. Aquele salto pontiagudo marcaria o compasso neurótico de quem apenas vem porque tem de vir, sem em nada querer ficar. Talvez ela, como fazia o garoto com os gatos, afagasse sua cabeça, e ele ronronaria em pensamentos de prazer. Depois, se esquivaria, indiferente de tocá-lo, e olharia pela janela distraída, vendo riscarem o asfalto e o silêncio os carros a passar. Para onde iriam? Para casa, depois das diversões da noite? E quantas diversões não estariam a acontecer enquanto ela perdesse o foco do olhar, e mirasse em ponto algum os minutos que passavam sem que nada para animar-lhe a alma acontecesse.

Fosse outra situação, imaginava o menino, ela talvez acendesse um cigarro... fosse outra situação, ele gentilmente lhe ofereceria isqueiro, conversa, beijos... Mas para que pensar no impossível? Não ofereceria o que não tivesse para dar: não fumava, não teria um isqueiro, e nem se atreveria a querer tocá-la. Porque era apenas um pequeno garoto. Tivera mil anos e seria apenas um pequeno garoto, dada a circunstância da ausência de sol entre as paredes.

Qual seria sua secreta idade? Tão velha quanto as melodias cinzentas de dias nublados, ou seria a juventude prematura de um copo de vinho que se esvai antes de chegar a meia noite? Antes de chegar a meia noite... havia nas horas um perfume – e não era o da ausência...

Silêncio..........

Os gatos estão voltando. Vieram, mesmo estando trancadas as portas do sujo banheiro. Não parecem contentes, sua chegada não pode ser bom sinal.

Não há velas na pequena capela. Quem sairá em procissão? Ela, nada sabe. Entra com a costumeira bandeja na mão, sobre ela uma seringa e duas ampolas... Sobre Ela, angústia de quem vê algo finito esgotar-se – vida!

Põe as mãos brancas sobre os cachos castanhos do rapaz. Murmura baixinho uma música triste que nem sabe de onde vem. Olha para os aparelhos ao lado da cama, depois fixa-se na visão da manta xadrez de lã...

Dói!

Uma reta marca o fim. Hora de chamar os doutores, nada mais a fazer. Seringas inúteis, inútil amor por um corpo morto. Logo, porém, nem pensaria mais nisso. Quantas pessoas não morrem em um hospital?

Os gatos gritam festa sobre o telhado, também imundo. Ronronam sua boêmia e cantam mais uma canção de missão cumprida. Da janela, um menino-homem, então vertido em luz, vê uma moça afagar o rosto inanimado que já lhe pertencera. Acabou-se o silêncio, voltam os ponteiros a girar. Finda uma história, triste, como a saudade antecipada das últimas páginas, feliz pelo próprio término.



- Isso foi escrito há mais ou menos um ano, e sofreu algumas modificações durante esse tempo. Fosse hoje, tenho certeza de que seria completamente diferente. Talvez muito mais drama do que mistério mal explicado - e mal construído, aliás. Mas desse texto mesmo assim!

Essa tentativa de suspense, meio suspensa entre o simbólico e o irreal (valham-me deuses, daqui a pouco falo como crítica literária!), alivia um pouco os pensamentos - meus. Parece distante - tanto quanto o coitado que entravado numa cama de hospital desde menino, apesar da maturidade do próprio corpo (a jovem que o vê sente compaixão ou atração, ou os dois?), nunca se pôde fazer homem.

Enfim, é o relato de uma vida não plena. Então, peço licença, e agradeço por ser ainda um pouco "poliana". Mesmo com o clichê de todo dia, sou mais a plenitude!, mesmo que ela também seja fim! -

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