Escreverei sobre algo bom, assumindo toda a responsabilidade daquele que aponta verdades. Algo bom, após um ano sofrido. Decerto, para acontecer, coisas ruins não escolhem deliberadamente um conjunto definido de trezentos e sessenta e cinco dias nem qualquer outro período de translado celestial. Sabemos que divisões temporais, como outras tantas divisões, são produtos da razão. Esta sim é a única a gozar das simetrias que enxerga. Um ano ruim: metade razão, um ano, metade humano, ruim. Funciona exatamente assim: esperamos, do ato de ter esperança, agora sem razão, que o ano ruim termine logo, como se na passagem de um dia para o outro, os ponteiros do relógio simplesmente anunciassem um fim terrível e um começo promissor. Infelizmente não sabemos todos, mas para mazelas do corpo e da alma, da condição humana, para estas, não há divisórias nem congruências. O tempo não é lógico, é anárquico e mal-educado. Não quero, com isso, evidenciar relações de causa e efeito, nem quaisquer outras, entre lógica, anarquia e educação. Vou além: é como um louco de quem se pode esperar tudo. Ele não tem caráter. É assassino em série sem padrão.
O tempo. Só passa para aquele que o conhece, tal como a medusa que petrifica aquele que a vê. Enuncio, então, a regra, ora inquestionável: aquele que conhece o tempo, não o possui. Todavia, a criança, dentre todas as coisas boas, tudo possui. Nós já ouvimos: ela tem todo o tempo do mundo. Esta é uma verdade. Na infância, rotações e translações terrestres valem tanto quanto juros e inflação, ou seja, não passam de palavras ocas. Portanto, a criança não conhece o tempo, ela o possui. É isso que sinto quando olho para ela. A liberdade que explode, a preocupação que se ausenta, a ansiedade que lhe falta. Não há sofrimento em uma criança. Não há morte. Com tudo ela se conforma, feliz, não em sua ignorância, mas em sua satisfação de saber o disponível. Quero deixar claro que criança não é um ser de nosso mundo. É de outra dimensão, fantástica, porque cria da imaginação. Infelizmente, a nossa dimensão é nostálgica, porque para a infância nenhuma ex-criança jamais regressou.
Deveria escrever sobre algo bom. Perdoa-me. O tempo, este guardado para reflexão, fez-me mudar de idéia em dois parágrafos. E para quem é sua vítima, otimista não há de se tornar.
Lembro-me de que fui criança. Tiraram-me o que tinha de mais precioso, sem o saber: todo o tempo do mundo. Fizeram-me conhecê-lo. Foi uma apresentação seca, sem pompas ou afagos: “Este é o tempo”, “Prazer em conhecê-lo”, “O prazer é todo meu”. Eu, a criança, ingênuo. Ele, o tempo, irônico. Deixara de possuí-lo. Passou a possuir-me.
Novamente questionarei o teor absoluto das próximas afirmações. É possível que o tempo seja pontual. Diz o ditado, “tudo tem seu tempo”. Acreditar nisto implica acreditar em algo a mais. Eis uma sabedoria que nos escapa. Para ilustrar, tomemos um exemplo da vida com outro ditado: a única certeza dos vivos é a morte. Não se sabe como nem onde. Nem o mais importante: quando? Morte e vida. Antônimos para muitos. Para outros, sinônimos perfeitos, se isso é possível. Questão gramatical de ovo e galinha, eu digo: morre-se para viver ou vive-se para morrer? “Só o tempo dirá”. Talvez para alguns, para os mais letrados e/ou astrológicos, o que digo não faça sentido. Para outros, profano um templo sagrado. O fato é que até mesmo tais dúvidas ou convicções acerca da pontualidade do tempo só despertam para aqueles que crianças não são mais e para lá não voltarão. Do tempo, todos somos escravos.
Desconfiado está o leitor mais sagaz, devorador de clássicos. Está certo, confirmo: não deixarei como herança o legado de minha miséria. De tempo, se me resta muito ou pouco, não sei. Sei que da criança nada sobrou. Desejo apenas que este ano logo termine e que o próximo seja muito melhor.
Um comentário:
Silêncio.
(e o tempo passa
arrastando correntes)
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