Podíamos considerá-lo, do ponto de vista artístico, um garoto normal, figura cujo tipo foi extensamente diagnosticado pela literatura. Nestes casos, talvez por dó, a arte pode conceder vidas fantásticas a estes personagens comuns, condimentando a história para torná-la comestível. Infelizmente, para Jorginho, foi isso o que aconteceu.
Era criado em rígido regime militar da fé. Seu pai, tenente-coronel das forças armadas, exigia a disciplina que, como fazia questão de deixar claro – mas em linguagem de guerra –, era necessária para enfrentar uma vida repleta de inesperadas vicissitudes. Sua mãe, uma beata inveterada, não abria mão do ensino cristão. Obrigava Jorginho a freqüentar escola de padre, lugar onde se aprendia a sentir culpa. De lá, o garoto saía apenas aos fins de semana para rever a família.
Naquela época, Jorginho tinha dezesseis anos de idade. Acatava todos os desejos dos pais, sempre muito feliz. Exceto por um: cortar cabelo. Desde criança, o garoto nunca suportara a idéia de ter o cabelo cortado. Ele mesmo não sabia bem o porquê, mas se sentia, ou imaginava sentir-se, estuprado. Odiava mortalmente o seu cabelo. Depois, arrependia-se e, de noite, pedia perdão a Deus. No final de cada reza, bem baixinho, como se fosse as letras miúdas dos contratos comerciais, pedia também que o cabelo parasse de crescer. Daria a vida por isso! Mesmo assim, obrigado pelo pai, passava as manhãs de sábado na sufocante masmorra de Seu Dito.
Conhecer o seu algoz deixava Jorginho ainda mais contrariado. O velho barbeiro era pessoa de bem, impossível de se querer mal. Pai de quatro filhos e uma filha, Seu Dito alimentava sua família conhecendo um único corte de cabelo, o militar. E há doze anos, Jorginho sofria em suas mãos. Contudo, naquele sábado, o garoto sentiu um calafrio de alívio quando ouvia seu pai, ao telefone, dizer que o velório de Seu Dito seria à tarde – o velho não resistira à idade. Calado, o garoto chorou. Todos se comoveram com a cena. Nunca mais teria o cabelo cortado por Seu Dito. Só isso importava e, como ele próprio imaginava, era fato mais que suficiente para esboçar, em qualquer pessoa minimamente decente, aquela alegria chorosa.
De fato, não houve corte de cabelo naquele fatídico sábado. Jorginho não conseguia disfarçar seu bom humor. Durante a semana, ninguém da escola de padres o reconheceu. Sentia-se Sansão revigorado. Fora possuído por força hercúlea. Ele, Jorginho, ganhara sua carta de alforria. Entretanto, sua felicidade durou até momentos antes da missa de sétimo dia do finado barbeiro, quando encontrou sua suposta Dalila.
Naquele sábado de manhã, ainda intoxicado pela felicidade, o garoto foi incapaz de perceber que seu pai já arranjara tudo. Pontualmente, às oito horas e quarenta e cinco minutos, Jorginho se encontrava na frente da antiga barbearia. Eram muitos fatos para um jovem assimilar em pouco tempo. Estava perplexo, estarrecido! Telma, a filha do meio de Seu Dito, assumira o posto do pai. Jorginho entrou em desespero. Empalideceu instantaneamente. Pensou que, se tudo ocorresse da pior forma possível, Telma viveria, pelo menos, por mais quarenta e dois anos e ele não iria agüentar esse sofrimento por tanto tempo.
Na verdade, não houve necessidade de agüentar sofrimento algum. Esses pensamentos terminaram no instante em que Telma, a fim de realizar o serviço, começava a preparar o garoto com capa protetora e borrifada de água no cabelo. É tarefa árdua, porque longa, descrever o que Jorginho sentiu naquele momento. Pode-se resumi-lo, no entanto, de modo superficial: um turbilhão de sentimentos confusos e novos. A causa era óbvia: aquela era sua primeira vez com mulher. Não importava quem era Telma, como era Telma ou se era Telma. Estava extasiado com o novo barulho que a tesoura fazia. Ela e a mulher trabalhavam graciosamente. E a cada esbarrão da cabeleireira, o garoto tremia. Nem se lembrava mais do maldito cabelo e esquecera-se completamente da antiga tortura de tê-lo cortado. Definitivamente, a filha do finado barbeiro mudara a vida de Jorginho.
Nos sábados seguintes, devido à ansiedade, o garoto passou a acordar mais cedo. Já na barbearia, ele pedia à cabeleireira para não usar a máquina. A tesoura prolongaria o seu prazer e, se tivesse sorte, poderia até ser acidentalmente cortado − como foi, de fato, duas ou três vezes, causando-lhe reações parecidas com um orgasmo.
Em três meses, já era visível a dependência, quase química, que acometia Jorginho. Se seu pai não o repreendesse com razão, o garoto cortaria cabelo duas vezes na semana, voltando da escola só para isso. Ele estava obcecado pelo momento. Não! Era paixão. Podia ser Telma ou qualquer outra. Mas seu cabelo tinha que ser cortado por uma mulher.
Assim, desde que Seu Dito morrera, Jorginho vivia a melhor fase de sua vida. Só não contava com os caprichos da arte, que é divina. Demorou um pouco, mas Deus ouvira suas preces de antigamente. Agora podia ser um pouco tarde, talvez até descontextualizado. O fato é que, repentinamente, a saúde de Jorginho se foi. Os médicos descobriram que ele era vítima de uma doença terrível. Ainda bem que, para a satisfação de todos, havia cura. O tratamento seria longo e penoso, como os médicos enfatizaram. Reações colaterais e queda de cabelo ocorreriam inevitavelmente, embora levassem a um final feliz. Em oito meses, o paciente estaria recuperado, firme, forte e com cabelo. Neste ponto da conversa com os doutores, Jorginho não queria ouvir mais palavra alguma. Levantou-se e pediu ao pai para ir embora.
Em casa, abalado pela triste notícia, o garoto precisou de cinco minutos para pensar − nada de disciplina ou fé. Lembrou onde seu pai guardava o revólver, dirigiu-se até o lugar, uniu arma e munição e deu fim à sua vida. Jorge Albuquerque de Oliveira suicidara-se. Suportaria a morte inexorável de uma doença fatal, mas era impossível resistir aos infindáveis longos meses sem ter cabelo para cortar. Morreu com a certeza de que este era um motivo pelo qual valia a pena dar a vida.
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