Caros leitores, sabemos que a tentativa de compreender o mundo, de compreender cada época, é recorrente na história humana. E, para esta tarefa, me parece que a literatura, principalmente através da prosa, tem sido bastante útil. As grandes parábolas servem a este papel tão bem quanto nada servira até sua invenção.
Para não irmos muito longe, comecemos por apresentar o Robinson de Defoe: homem ativo, branco, burguês e racional. Eu sei que vocês, leitores, já o conheciam.. Ele é o ideal que a mídia prega, que os politicamente corretos pregam, que a Igreja prega, ele é o famoso empreendedor, o homem que pode “melhorar” o mundo. E não podemos esquecer, meus caros, que é ele quem purifica os homens de cor, subdesenvolvidos, através do trabalho, obviamente!
Passemos ao próximo: Gulliver, de Swift, um ser errante que “passeia” por mundos bizarros, onde os espelhos satíricos, diante da modernização capitalista, refletem a imagem das “virtudes” do homem burguês. Entendamos então Gulliver como a primeira utopia negativa. Dele se seguiu “A Máquina do Tempo”, no qual o conteúdo gira em torno da oposição de classes. Em seguida, como conseqüência das transformações no mundo, ou seja, as guerras, as ditaduras, e as crises, o conteúdo passa a girar em torno de um sistema totalitário. Fazem parte deste contexto as parábolas absurdas de Kafka, “Adimirável mundo novo” de Aldous Huxley, e principalmente “A Revolução dos Bichos” e “1984” de George Orwell.
Aqueles de leitura menos atenta, e aqueles que não percebem o que vivem, acabam resumindo Orwell ao “vigilante da democracia” ou àquele que repudia o “totalitarismo” e demonstra o quanto o capitalismo é mais justo, mais democrático e propulsor da liberdade.. Ledo engano meus caros e já escassos leitores.
Tais democratas não percebem que o mundo de Orwell é, hoje, mais do que nunca, o mundo em que vivemos. A utopia negativa é a nossa realidade. O Ocidente democrático é o centro desse totalitarismo.
O trabalho, enquanto valor, se arraigou por toda a sociedade, e o desejo irracional pelo trabalho dominou o homem, nos transformou em máquinas de produzir, nos embruteceu, nos roubou a capacidade de sonhar, desejar e criar. O que construímos foi um sistema de coerção muito mais cruel e eficiente que qualquer totalitarismo antes visto e vivido. É mais eficiente por ser mais totalitário, e mais cruel porque faz o indivíduo crer que ama o que faz. Quero dizer: os sentidos das coisas se inverteram. Fazemos uma coisa pensando estar fazendo outra: escravidão é liberdade; guerra é paz; morrer é viver; odiar é amar.
Em nome da paz fazemos as guerras. Em busca da liberdade nos escravizamos, doamos a alma a uma entidade que nem alma tem. Nossas vontades não são mais nossas, ou só são enquanto meios para o contínuo proseguimento da vida que não é vida.
O que vivemos hoje é uma sociedade que busca insensantemente sua auto-destruição. Seja pela paz, quer dizer, através da guerra; seja pela vida, quer dizer, através do suicídio; seja pelo bem-estar, quer dizer, destruir a natureza; seja pelo viver, quer dizer, trabalhar à exaustão. A fazenda de Orwell é o nosso mundo, porém muito mais complexo, onde quem manda não é definido (nem o fazendeiro Jones e nem o porco Napoleão), é na verdade uma rede complexa de poderes e órgãos executivos que agem caoticamente, porém eficientemente, em busca de um único fim: o fim da humanidade. C´est-a-dire, um mar sem praia, um rio sem água, uma floresta sem verde, uma cidade sem movimento e um deserto sem areia. A Terra como um grande cemitério e, embora cheio de mercadorias, sem consumidores.
Como já dizia Arendt, “A era moderna trouxe consigo a glorificação teórica do trabalho, e resultou na transformação efetiva de toda a sociedade em uma sociedade operária. Assim, a realização do desejo, como sucede nos contos de fadas, chega num instante em que só pode ser contraproducente. A sociedade que está para ser libertada dos grilhões do trabalho é uma sociedade de trabalhadores, uma sociedade que já não conhece aquelas outras atividades superiores e mais importantes em benefício das quais valeria a pena conquistar essa liberdade.”
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