sexta-feira, 25 de abril de 2008

Vermelho Para Bem ou Para Mal

Bem diria a sabedoria popular: as aparências enganam! Dos sentidos, o mais aguçado, a visão. Vai ver que por isso mesmo ela se deu de metida, a se achar com a superioridade besta de pregar peças, nem tão boas assim.

Athos é um exemplo disso. Quem agora o vê, cabeça baixa, todo encolhido, nunca há de acreditar que a sua força física foi-lhe motivo para as mais louváveis e amedrontadoras atribuições de bravura.

Verdade que para isso nem só a visão ajudou. Fizeram seu juízo os olhos, e mais a boca tratou de levar aos ouvidos desconhecidos a inverdade.

E a culpa, coitado, não poderia mesmo ser dele. Primeiramente, porque parece que as divindades que cuidam da concepção e as que tratam dos mecanismos de construção da personalidade resolvem pregar peças ao senso comum.

Ora, se todo mundo pensa que grande número de músculos é motivo de coragem, então vão as duas planejar um robusto ser cheio de seus medos. Ou um franzino valente, que não impõe reverência a ninguém. Mas da genética de Athos, falaremos depois.

Quero agora é tratar da construção de sua frágil persona.

Nosso amigo não teve a oportunidade dos poetas. Nunca foi dado às letras, antes aos bifes de carne suculenta e macia. Mas tivesse a oportunidade de saborear outra suculência, a de um sangüíneo poema, esgarçaria algo como Álvarez de Azevedo entre os dentes, com toda a fúria. Nacos de ultra-romantismo, que iam colorir de vermelho a sua insuportável existência medíocre.

Não é difícil que se entenda essa triste situação. Pois imagine só a vida restrita, toda ela, a pouco mais de vinte metros quadrados.

Vez ou outra, seres esguios e de voz engraçada, o levam a um mundo além. Lugar em que se pode ver um azul de céu mais intenso, e uma variedade de vida verde inimaginável em sua prisão ao ar livre.

Também nesse estranho e fantástico mundo há algo de perigo...

A velocidade de umas coisas grandes e barulhentas, que soltam luzes em alguns pontos, e às vezes um pouco de fumaça.

Que estranho, serem todas tão iguais entre si, cada uma, porém, com sua diferença de formato. Tivesse visão tão traiçoreira quanto a nossa, entenderia ele que também as cores dessas aberrações se faziam em amplo leque, na maior das vezes, de tons escuros. Porém, de tonalidade, ele nada sabe. Só entende de claridade e escuridão e sabe que as chamam de carros, ou, bem de vez em quando, automóveis.

Algumas reluzem quando batia-lhes atrevidamente o sol. O claro ainda mais revelado! Outras, tão opacas, são as que mais costumavam vomitar aquela fumaça, escura!, enquanto seu ronco fosse mais profundo ainda! Aí então ele gritava, nas esperança de que elas o ouvissem.

E olha que não é raro que Athos grite. Especialmente quando chega a noite, e o pequeno espaço em que ele vive, por mais conhecido que fosse, começa a se tornar mistério.

Como preso, raptado não soubesse onde, surpreendido em cela de repente aumentada, e ao mesmo tempo tão menor do que o seu sentir, costuma por entre os dentes algo de choro e de ódio.

Grande coisa! Ninguém ouviria, ninguém nunca ouve!

E se ouvisse, qual seria a diferença? Dificilmente o tiram dali. Permaneceria ele em seu dolorido mistério de solidão.

Houvesse pedaços de carne, fibras se desfazendo como sentia desfazer-se ele próprio, e talvez conseguisse ficar quase calmo, quase feliz:

Nesses momentos não havia carne! Não havia nada.

E era então que a sua robustez se fazia inútil! Ah, quantos já ao entrarem no pequeno espaço de vida de Athos não fugiram ao vê-lo? E não perguntaram, meio entre dentes:

“Não é perigoso?”

Perigoso!? (...)

O perigo da vida chama-se sofrimento. E disso ele não entendia demais?

Qual sofrimento maior que não haver boa alma para se por no seu lugar, morno caos de todos os dias?

E que mal havia que lhe dessem sempre carne?

Por que aquelas bolinhas insossas naquela estúpida tigela?

Porque ter de fazer a cara caber ali naquela coisa redonda, bater na linha dos olhos, em um incômodo de não poder chacoalhar a cabeça de satisfação (ainda que reles, com aquela comidinha terrível!)?

E isso ainda nem era o pior!

Ruim mesmo era quando o mistério da noite escondia até mesmo aqueles pontos azuis no céu preto, que ele sabia que costumavam chamar de estrelas.

Athos gosta das estrelas, e por isso mesmo tem todo o medo delas.

E quando elas se apagam, e algo estranho faz do negro um fundo de tons purpúreos, e alguma coisa de ronco que não era aquele das coisas estranhas que via durante o dia e nem o da sua voz...

...

E logo depois, não é incomum que um risco luminoso cortasse horizontes perdidos...!

Ah, não, as estrelas caindo!

E se uma delas o ferisse?

Sabe que com isso vem, logo depois, pingos gordos de água a baterem-lhe na cabeça. Não gosta, mas disso poder se livrar, desde que se enfie naquele espaço ainda menor, costumavam chamar de “casinha”.

E se o mundo acabasse todo como as estrelas caídas, e ele nunca pudesse conhecer o que não fosse a sua permanente solidão?

...

Desespero!

...

Músculos: ajam! Hajam: músculos!!!

O amplo tórax tem que ser útil. As pernas tem que dar um bom pulo.

Existe um lugar maior, bem ali, além da parede.

Lugar em que não há estrelas, mas há luz.

Lugar em que não cai água, há teto, mas é bem maior do que a casinha.

Lugar que ele sabia ser de onde vem os amados suculentos bifes.

Lugar de onde vem as criaturas esguias que o levam para passear. Que passam a mão em sua cabeça, quase que com libido:

“Onde já se viu, um garoto tão bonzinho!” (Vozes afetadamente infantis!)

Um garoto tão bonzinho, lamentável!

Na compra do filhote, imaginaram um cão de guarda, uma fera destroçadora de desconhecidos...

Pronto, eis que agora faz sentido falar da compleição genética de nosso triste amigo – a que se julga pertencer aos mais ferozes guardiões do homem, a ostentação de força, virilidade, destruição em quatro patas - um Pit Bull!

E Athos, a bem da verdade que viriam a saber depois, um pobre coitado!

...

Não lhe dessem força as suas pernas, não estaria agora ele ali, preso nas grades da janela, colocadas para que não pudesse ele mesmo entrar.

Em seu grande ato de bravura, justamente a covardia de fugir ao próprio medo. Só poderia ter a frustração!

Ele é um nada: resta-lhe gritar e gritar e gritar: uivar! Latir fininho e alto (quem sabe poderia bater em alguma estrela ainda viva, escondidinha?).

Por que achar que ele fosse super herói, corajoso?

Pit bobo, cachorro babão, um tonto carente.

Que não quer mais nada, além de outros horizontes do passeio matinal (que raramente era feito!), de um afago descompromissado na ampla cabeça (e se pudessem caprichar ao passar as mãos por trás da orelha, tanto melhor, até chacoalhava o pontudo rabo de felicidade!), de um bife para afogar suas angústias carnívoras (afinal, arroz e feijão ao menos tem companhia variada no prato de todo dia!).

...

Não!

Ele era menino bobo, um Pit babão!

Preso nas grades da janela, depois de seu pulo frustrado, rumo a entrar na casa de verdade (não na casinha):

“ Athos, saia daí.”

Não!

Não tem jeito. Entalado, faz de novo uso de sua força, agora para sair, pular de volta para fora. É mais difícil.

Para fora, sempre!

Ódio, a força apenas serviu para que o reconhecessem como covarde. Não a tivesse, não teriam o que esperar dele!

Não conseguiria alcançar os ferros que puseram para que ele mesmo ficasse sozinho, no quintal escuro, na noite sem estrelas, na solidão.

...

Não!!!

... (uivo ainda mais agudo.)

Cai desajeitado no chão.

Levanta-se.

Põe a patinha no piso áspero do cimento.

Uma pontada das mais agudas. Machucou-a.

Sangra.

Assim é. Não o sangue dos filés, o sangue dele próprio.

Ao menos aprendeu com as gentes a ser egoísta.

Já que tudo, para bem ou para mal, tem de terminar nesse vermelho tão vida que sempre escorre e escorre e dói, então que ele, como sempre, se ponha para fora, mas na vingança de seu latido uivado... de dor, claro!

Quase como um poema, Athos irrita os ouvidos alheios.

Mas não tem os tuberculosos créditos de Álvarez, porque não o permite o maldito senso comum que apenas vê (maldita visão) o físico viril de fera perigosa.

Engano imbecil: se olhassem em seus olhos cor de mel, veriam a tamanha doçura da sua vontade.

Vontade de amor, de passeios, de afagos, de carne...

Pff! Mas que nada:

“Cala a boca, Pit Bull, alguém precisa dormir nessa casa, seu cagão!”

Casa! :

Não é essa a palavra final a ser colocada aqui, é descrédito. Injusto descrédito!

domingo, 20 de abril de 2008

Depois da festa (com a cunhada)

A Nelson Rodrigues

Mercedes,

Tu és a água da minha vida:

– Insípida!
– Inodora!
– Incolor!

Mas mata minha sede
E eu não posso viver sem!

domingo, 6 de abril de 2008

Da Botânica da Alma (Decoração de Poesia Doméstica)


Tenho lírios abertos
sobre a minha mesa
alegre.
São surpresas
breves de dias desconhecidos.

Um segundo,
seguem-se dores
mundanas
- mendicância na minha alma
mansa.

Nesse segundo
me chamo o limite
ao inonimável.

Janelas abertas
juntam-se cortinas,
corta-se o vento
na violência do banal.

E eu me compro
em lírios brancos:
abordagem branda
de mentiras capitais.

Fossem as dores
do mundo
as dores das pétalas dele
pedaços meus
não partiriam
quando de mim
pétala desvio
o olhar de brancura.

Resta-me janela
ruidos de urbanidade,
calçadas sujas
- outras almas que
se sussurram na vida
a inércia da surra
dos dias.

E resta-me
a mim,
que me prefiro dormir
longe de mim,
Alma que almeja
afrescos de irrealidade:

Alma que põe,
lírios brancos sobre a mesa.

(Inexpressão de liberdade)

!

[10/02/2008]