sábado, 23 de agosto de 2008

Apologia ao Cinema Sentimental


Vou fugir um pouco do costume dos Arautos, e me dou agora ao divertimento da folga dos meus eus-poemáticos. Se existe mesmo separação entre autor e personagem, esta crônica é interpretada pela personagem da própria autora. Se é que eu mereço me chamar de autora de qualquer coisa........... (aqui várias reticências são necessárias!)


Fui a uma locadora de filmes. Queria encontrar "De Olhos bem Fechados". Só porque já assisti algumas coisas do Kubrick, e não conseguia imaginar como seria qualquer outra feita por ele que não fosse ficção científica.
Encontrei o que queria. E algo mais.

Como patética incorrigível que sou (e indecisa também!), não consigo sair desses estabelecimentos com menos do que dois ou três DVDs, ou não levo nenhum. E entre as minhas escolhas é claro que não faltaria algo de cheiro água com açúcar - isso eu não escondo.
Mas no meu caso até mesmo o que é tão meloso pode ter suas especificidades.
Por exemplo... Eu poderia ter escolhido alguma coisa que soasse como "O Amor de Nossas Vidas blá blá blá", o que não deixa de ter um pouco a ver comigo, pena já ser nota muito destacada nessa melodia semi pobre holywoodiana.
Não.
Escolhi um filme que originalmente se chama "Martian Child". Por que?
A minha queda por ficção científica? Este não é exatamente um filme de ficção científica. E, sinceramente, também não sou nenhuma fanática. Na verdade, acho que não sou fanática por nada, nem aficionada - não sou do tipo que faz coleções ou conhece até o mais obscuro ruído orgânico da vida de um ídolo. Apenas me interesso. Por muitas coisas. Algumas aparentemente imisíveis, como seres do espaço e bossa nova.
Pois que deixemos a bossa para outro momento (com todo o perdão dos conectivos inadequadamente utilizados!), e voltemos aos seres do espaço. Só porque hoje eu me sinto quase espacial!

...

http://www.newline.com/properties/martianchild.html

A palavra extra-terrestre se auto define. Aquilo que é extra, que vai além. Pois imagine só a história de uma criança que vai tão além - a ponto de achar-se a si mesma algo extra-este-mundo.
Creio que, em verdade, vez ou outra qualquer um que tenha seu mínimo de sensível pense em si mesmo como extra. E extraterrestre, ainda, se sentirmos a vida como aquela monotonia aparentemente sem sentido. Talvez eu mesma aja como o garoto de marte quando, sem vontade de pensar na loucura de todo dia, me dedico à minha própria. Nem sempre consigo dar a ela os contornos e formas dos personagens que quero. Talvez eu ainda não tenha apreendido a fantástica "técnica" de sentir o gosto das cores. Mas bater incansavelmente fotografias surpresas de qualquer coisa pode ser um hábito que eu e esse curioso protagonista tenhamos em comum.
O engraçado é que eu não sou como ele, mas ainda assim sei exatamente como é ser como ele. E isso me lembra uma melodia rock derrotada cantando "In Love With The Alien", que já foi trilha sonora de uma crônica do meu antigo blog.
Seja lá o que esse mito do alienígena signifique, e que essa capacidade alien de ir tão além da Terra a ponto de se estar sempre a trombar com ela em uma surpresa meio que libidinosa possa ter a ver com uma fuga do "id" em relação às mesquinharias do "super ego"...
Eu digo que... vale. Vale sim a pena dar-se de presente ver um filme que não seja um enredo de brutalidades (ainda que muitas vezes necessárias) desse cinema inteligente assustador. Vale até alugar um DVD cujo título em abrasilharado é "Aprendendo a Viver" (concordo, péssimo mesmo!). Porque o seu original, The Martian Child, baseado no livro homônimo de alguém como um roteirista de Startrack, é extra. Extra emocionalmente bonito. Tem suas cenas dispensáveis, claro (John Cusack vai bem como pai adotivo e escritor esquisito simpático, qualquer coisa galã... melhor deixar para lá...), mas fica no Imprescindível uma história "real", que faz até parecer adequado recorrer ao clichê:

"a arte imita a vida". -

- Só porque sem vida, não há que haver sentimento, e eu não vejo arte, por mais inteligente que seja, sem a fantástica-marciana-extra-capacidade de sentir.

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Odes à mãe ausente

Estas são as últimas. Prometo.



VII

É a língua de Camões a mais bonita,
Mas não por ser a língua de Camões,
Nem por ter sido amante de Pessoa.

Não por seu sangue latino escarlate,
Por seu passado de glórias marítimas,
Suas conquistas e suas tragédias.

Não por tantos amores impossíveis
Ou por tantos amores desgraçados
Que digo ser a mais bela entre todas.

Não a amo, no entanto, por ser tão bela.
Com ela é que posso sentir saudade
E só com ela, por isto bela, amo.


VIII

Em toda partida no porto
Aquele que segue e aquele que fica
– Sempre aos pares são os que partem –
Na despedida, a dor, com sal expurgam.

Não chores, minha amada mãe,
Por teu filho que fica, mas que parte.
Não temas pelo cais do porto
Pois em todo adeus, Deus está presente

Machado

Os sites abaixo trazem coisas bem interessantes sobre o sempre foda Machado de Assis.
Para quem não conhece, o "Domínio Público" disponibiliza gratuitamente as obras do mestre. Já o site produzido pela Unesp traz algumas curiosidades e links que valem a pena. Espero que apreciem.

http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/PesquisaObraForm.jsp

http://www.machadodeassis.unesp.br/

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

PELE

Jantar de domingo.
As sobras do almoço expostas sobre a mesa em vitrines de plástico transparente, santificadas tupewares. Em um canto uma garrafa aberta de vinho, e dentro dela pouco sobrando do líquido quase vermelho quase roxo. A toalha branca lacônica aceita em sua simplicidade áspera as manchas vermelhas do molho do macarrão derramado. E sobre os pratos de vidro azul, muito azul, anil reciclado, os talheres cruzados, como uma espécie de lápide da refeição encerrada.
É o momento da conversa cansada.
Geralmente trivialidades. O time de futebol que perdeu, o novo namorado de fulana, aquela notícia de jornal...
Há também dias outros em que se ri muito. Aquela piada que contaram, como era mesmo?

(E o cachorro olhando do lado de fora da porta, ele uiva implorando por um pedaço de qualquer coisa suculenta que podem ser que lhe dêem, pode ser que lhe neguem.)

Nesse dia a conversa não era uma trivialidade alegre, mas uma espécie incômoda de discussão de família, daquelas que vai chegando como uma espécie de invasor alienígena e logo faz a abdução das risadas de costume. Quando será que vai devolvê-las?
Ah, nesses momentos só Deus, deuses ou as forças sobrenaturais é que sabem. Como sempre, há quem abocanhe, tal qual se morde um suculento filé, os mais ferrenhos argumentos, e vai querer discutir até levar um belo tombo emboscado na falta de bom senso. Que é para onde se costuma ir, nessas situações.
Há quem sadicamente veja graça em tudo. E há, felizmente, quem se aborreça: amém, ainda resta alguma sensatez!
Existem os aborrecidos que se metem a por panos quentes. A esses eu retiro a qualidade dos sensatos. A dor de cada um é a dor de cada um, mesmo que seja uma dor burra ou mesmo imaginária.
E existem também os aborrecidos que preferem se calar. Omissão? Talvez, mas é muitas vezes melhor do que intromissão. E se não é por mal, que por bem se omita aquela opinião que nunca será ouvida, ainda que dê socos de boxeador no orgulho alheio: Se pedirem uma opinião, diplomacia...
Ou fuga!
Pois os aborrecidos calados, muito freqüentemente, costumam fugir. Um finge que vai ao banheiro. Outro se lembra de que esqueceu algo de que se lembrava, mas de que não se lembra mais. Outro conta as rachaduras de um teto. E conheço até o caso de um que resolveu tentar a telepatia com uma lagartixa, pobre réptil inocente, estirada na parede laconicamente tão branca quanto a toalha.
(Sem deixar de citar, claro, a possibilidade de ir consolar o pobre cão esquecido para as deliciosas sobras dominicais – porque deve mesmo ser muito ruim comer ração enquanto todos devoram lasanha!)
Naquele dia houve outro exemplo muito bonito de fuga.
Trata-se da divagação filosófica sublime, sublimemente superior em sua... superioridade, só para poupar mais adjetivos. Fingir a própria intelectualidade é algo muito divertido, ainda mais quando se pensa que excesso de intelectualidade às vezes é algo bem besta, bem forçado, bem antipático e bem ridículo. No caso, são pensamentos silenciosos, que não ultrapassam a fronteira barulhenta das cordas vocais.
Então o ridículo é aquele que existiria no julgamento de outras pessoas, se pudessem ouvir ou ver esse devaneio íntimo.
Devaneio em que se constroem imagens cotidianamente surreais. Como em um filme de Fellini, talvez. Ah, a tragédia do bom humor. Realmente, percebe-se que o vinho escolhido não era dos melhores: muito ácido!
Aliás, o vinho! Quanto de imaginação ele não rende. Taças seguradas por braços entrelaçados, e lábios libidinosos a roçá-las. Vinho não é inocência, e se Eva fosse mais atrevida teria oferecido um cálice a Adão, e não uma simples maçã. Mas não é nossa função aqui reescrever a Gênese. Porque não queremos dar origem a nada e, francamente, quem é que tem paciência para discutir religião, ein? – Aliás, essa seria uma boa péssima pauta para um conversa de fim de jantar dominical. -
Não, não haveria paciência para esse assunto nem nessa ocasião – mas é óbvio que os ânimos iriam se exaltar, não?
Não!? Ah, também isso eu não quero discutir! Estava falando de filosofações e vinho. Vinho dos erotismos. Vinho dos glutões.
É claro que hoje falar em glutonice parece coisa muito antiga. Havia os glutões medievais, hoje temos o estereotípico do gordinho branquelo norte-amarericano que devora potes de cinco litros de sorvete vendo vídeos de ginástica, como aparece em filmes clichê e vai ver é bem assim pelas bandas de lá, e pelas de cá também (por que não?).
Mas se penso em vinho e me vem à cabeça a glutonice, então associo uma coisa com a outra, porque tenho que dar vazão à sinceridade no que escrevo, ou não vale muito a pena escrever. E como já acho que não tem muita valia isto aqui, ponho a glutonice no meio da história e pronto!
Pois bem... olha só que acontece que ela vem bem a calhar:
Em um dos pratos estão restos de pele de frangos. Pele de frango desprezada - super gordurosa! Daquela gordura que não se esconde, mostra a cara grudenta sem o medo do desprezo. O dourado sujo da pele assada, frita, mais do que morta. Mostra a sua textura viscosa, espécie de verniz que não pode indicar qualidade de tintura cor de nojo!
Tem quem goste. Tem, aliás, de tudo no mundo. Mas olhar para a pele do frango, olhar para um verdadeiro ultraje escandaloso à saúde vascular de qualquer cristão (por que os crentes de outras fés ou os não crentes não tem problemas circulatórios ou por que glutonice medieval remete às culturas cristãs?). O prazer da mastigação, o martírio de um infarto: como é dura essa emboscada, esse dilema humano, demasiado humano!
A garrafa de vinho ao menos é bonita. A pele de frango quando esfria é inegavelmente nauseante até para os que, quente, adoram destroçá-la ainda mais entre os dentes.
E então é que eu, no meio áspero da discussão, ouvindo... ouvindo, tendo vontade de falar para logo depois ela se transformar na estóica preguiça de quem sabe que emitir opiniões muitas vezes é jogar lenha a fogueira que já está bastante alta, me entrego a esse devaneio. Dou razão a x, e y que me perdoe – digo isso de passagem, só para cometer uma omissãozinha de quem não quer ver cabeças rolarem, mas também não está a fim de brincar de país das maravilhas colocando panos quentes, ou melhor, panos mornos (porque ao menos o quente escolheu qual lada guiaria os seus juízos!).
E para não deixar o que penso ultrapassar a minha garganta, já que não consigo a temperatura do sentimento ameno, olho para o vinho e para a pele suja das galinhas mortas.
Quando criança gostava bastante da pele depenada e depois frita delas, especialmente a das asinhas que eu comia segurando com a mão para depois lamber os dedinhos. Foi que ganhando idade eu criei amor pelas minhas artérias, e numa espécie de chantagem emocional saudável as gorduras saturadas passaram a ser minhas eternas inimigas. Meu estômago comprou a briga, e passou a revolver-se todo com a aproximação de tais tecidos agressivamente gordurosos e engordurados. Sem dúvida, uma revolução em minha vida.
Revolução essa capaz de causar certo... nojo, ué! Basta pensar naqueles frangos sujos de “televisão de cachorro” que ficam girando, girando, girando...

...

O que até uns meses eu não sabia era que os mendigos, pessoas, também eles ficam esperançosos com as avezinhas mortas giratórias. Assim como talvez o meu próprio animalzinho de estimação fica à porta implorando com os olhos que lhe dêem alguma coisa – qualquer coisa! – para comer naquele momento.
Eu amo o meu bichinho. Será que poderia vir a amar um mendigo?
Uma vez dei umas moedas a um deles, enquanto guardava na carteira umas duas notas de cinqüenta reais (cinqüenta reais!). Ele sorriu bem aberto, e eu fiquei com uma felicidade hipócrita de pessoa caridosa. Fiquei feliz mesmo.
E...
...me ocorreu que ele poderia ser um bêbado!
Pronto, dei dinheiro para a cachaça, alimentei um vício, eu que queria tanto ser uma alma caridosa!
Pensei bem em quem era eu para julgá-lo. Pobre coitado: ele ou eu?
Sem resposta, resolvi aliviar ainda um pouco mais a consciência (será que não deveria deixá-la mais pesada, não?). E o que ele iria comprar quando juntasse algum dinheirinho?
Pão.
Pão francês.
Por que com um pãozinho barato, ele iria a algum restaurante barato, esperaria o último frango barato da televisãozinha de cachorro ser vendido. Então o atendente do estabelecimento lhe daria as sobras de pele que caíssem durante o processo giratório – o espetáculo dos cães sem endereço. E, então eu sabia, também dos homens sem endereço!
Ah, e fugindo da discussão de fim de jantar de domingo, eu me lembrei do sorriso simpático – sim, simpático - do mendigo. Então pensei que ele ficaria feliz com os restos largados sobre o prato azul. E a glutonice (se ele soubesse o significado dessa palavra, ou se o ligasse a ela) a que me remetia o vinho, para ele seria na verdade o luxo!
... Aquele luxo inalcançável, tanto quanto o consenso em uma guerra oral - ao fim de um jantar de domingo...
Para o bem de minha consciência, da qual aqui já falei demais, seria bom que eu não tirasse conclusões desse fato, ou dessa triste associação que fiz:

Encerro por aqui.