sexta-feira, 1 de agosto de 2008

PELE

Jantar de domingo.
As sobras do almoço expostas sobre a mesa em vitrines de plástico transparente, santificadas tupewares. Em um canto uma garrafa aberta de vinho, e dentro dela pouco sobrando do líquido quase vermelho quase roxo. A toalha branca lacônica aceita em sua simplicidade áspera as manchas vermelhas do molho do macarrão derramado. E sobre os pratos de vidro azul, muito azul, anil reciclado, os talheres cruzados, como uma espécie de lápide da refeição encerrada.
É o momento da conversa cansada.
Geralmente trivialidades. O time de futebol que perdeu, o novo namorado de fulana, aquela notícia de jornal...
Há também dias outros em que se ri muito. Aquela piada que contaram, como era mesmo?

(E o cachorro olhando do lado de fora da porta, ele uiva implorando por um pedaço de qualquer coisa suculenta que podem ser que lhe dêem, pode ser que lhe neguem.)

Nesse dia a conversa não era uma trivialidade alegre, mas uma espécie incômoda de discussão de família, daquelas que vai chegando como uma espécie de invasor alienígena e logo faz a abdução das risadas de costume. Quando será que vai devolvê-las?
Ah, nesses momentos só Deus, deuses ou as forças sobrenaturais é que sabem. Como sempre, há quem abocanhe, tal qual se morde um suculento filé, os mais ferrenhos argumentos, e vai querer discutir até levar um belo tombo emboscado na falta de bom senso. Que é para onde se costuma ir, nessas situações.
Há quem sadicamente veja graça em tudo. E há, felizmente, quem se aborreça: amém, ainda resta alguma sensatez!
Existem os aborrecidos que se metem a por panos quentes. A esses eu retiro a qualidade dos sensatos. A dor de cada um é a dor de cada um, mesmo que seja uma dor burra ou mesmo imaginária.
E existem também os aborrecidos que preferem se calar. Omissão? Talvez, mas é muitas vezes melhor do que intromissão. E se não é por mal, que por bem se omita aquela opinião que nunca será ouvida, ainda que dê socos de boxeador no orgulho alheio: Se pedirem uma opinião, diplomacia...
Ou fuga!
Pois os aborrecidos calados, muito freqüentemente, costumam fugir. Um finge que vai ao banheiro. Outro se lembra de que esqueceu algo de que se lembrava, mas de que não se lembra mais. Outro conta as rachaduras de um teto. E conheço até o caso de um que resolveu tentar a telepatia com uma lagartixa, pobre réptil inocente, estirada na parede laconicamente tão branca quanto a toalha.
(Sem deixar de citar, claro, a possibilidade de ir consolar o pobre cão esquecido para as deliciosas sobras dominicais – porque deve mesmo ser muito ruim comer ração enquanto todos devoram lasanha!)
Naquele dia houve outro exemplo muito bonito de fuga.
Trata-se da divagação filosófica sublime, sublimemente superior em sua... superioridade, só para poupar mais adjetivos. Fingir a própria intelectualidade é algo muito divertido, ainda mais quando se pensa que excesso de intelectualidade às vezes é algo bem besta, bem forçado, bem antipático e bem ridículo. No caso, são pensamentos silenciosos, que não ultrapassam a fronteira barulhenta das cordas vocais.
Então o ridículo é aquele que existiria no julgamento de outras pessoas, se pudessem ouvir ou ver esse devaneio íntimo.
Devaneio em que se constroem imagens cotidianamente surreais. Como em um filme de Fellini, talvez. Ah, a tragédia do bom humor. Realmente, percebe-se que o vinho escolhido não era dos melhores: muito ácido!
Aliás, o vinho! Quanto de imaginação ele não rende. Taças seguradas por braços entrelaçados, e lábios libidinosos a roçá-las. Vinho não é inocência, e se Eva fosse mais atrevida teria oferecido um cálice a Adão, e não uma simples maçã. Mas não é nossa função aqui reescrever a Gênese. Porque não queremos dar origem a nada e, francamente, quem é que tem paciência para discutir religião, ein? – Aliás, essa seria uma boa péssima pauta para um conversa de fim de jantar dominical. -
Não, não haveria paciência para esse assunto nem nessa ocasião – mas é óbvio que os ânimos iriam se exaltar, não?
Não!? Ah, também isso eu não quero discutir! Estava falando de filosofações e vinho. Vinho dos erotismos. Vinho dos glutões.
É claro que hoje falar em glutonice parece coisa muito antiga. Havia os glutões medievais, hoje temos o estereotípico do gordinho branquelo norte-amarericano que devora potes de cinco litros de sorvete vendo vídeos de ginástica, como aparece em filmes clichê e vai ver é bem assim pelas bandas de lá, e pelas de cá também (por que não?).
Mas se penso em vinho e me vem à cabeça a glutonice, então associo uma coisa com a outra, porque tenho que dar vazão à sinceridade no que escrevo, ou não vale muito a pena escrever. E como já acho que não tem muita valia isto aqui, ponho a glutonice no meio da história e pronto!
Pois bem... olha só que acontece que ela vem bem a calhar:
Em um dos pratos estão restos de pele de frangos. Pele de frango desprezada - super gordurosa! Daquela gordura que não se esconde, mostra a cara grudenta sem o medo do desprezo. O dourado sujo da pele assada, frita, mais do que morta. Mostra a sua textura viscosa, espécie de verniz que não pode indicar qualidade de tintura cor de nojo!
Tem quem goste. Tem, aliás, de tudo no mundo. Mas olhar para a pele do frango, olhar para um verdadeiro ultraje escandaloso à saúde vascular de qualquer cristão (por que os crentes de outras fés ou os não crentes não tem problemas circulatórios ou por que glutonice medieval remete às culturas cristãs?). O prazer da mastigação, o martírio de um infarto: como é dura essa emboscada, esse dilema humano, demasiado humano!
A garrafa de vinho ao menos é bonita. A pele de frango quando esfria é inegavelmente nauseante até para os que, quente, adoram destroçá-la ainda mais entre os dentes.
E então é que eu, no meio áspero da discussão, ouvindo... ouvindo, tendo vontade de falar para logo depois ela se transformar na estóica preguiça de quem sabe que emitir opiniões muitas vezes é jogar lenha a fogueira que já está bastante alta, me entrego a esse devaneio. Dou razão a x, e y que me perdoe – digo isso de passagem, só para cometer uma omissãozinha de quem não quer ver cabeças rolarem, mas também não está a fim de brincar de país das maravilhas colocando panos quentes, ou melhor, panos mornos (porque ao menos o quente escolheu qual lada guiaria os seus juízos!).
E para não deixar o que penso ultrapassar a minha garganta, já que não consigo a temperatura do sentimento ameno, olho para o vinho e para a pele suja das galinhas mortas.
Quando criança gostava bastante da pele depenada e depois frita delas, especialmente a das asinhas que eu comia segurando com a mão para depois lamber os dedinhos. Foi que ganhando idade eu criei amor pelas minhas artérias, e numa espécie de chantagem emocional saudável as gorduras saturadas passaram a ser minhas eternas inimigas. Meu estômago comprou a briga, e passou a revolver-se todo com a aproximação de tais tecidos agressivamente gordurosos e engordurados. Sem dúvida, uma revolução em minha vida.
Revolução essa capaz de causar certo... nojo, ué! Basta pensar naqueles frangos sujos de “televisão de cachorro” que ficam girando, girando, girando...

...

O que até uns meses eu não sabia era que os mendigos, pessoas, também eles ficam esperançosos com as avezinhas mortas giratórias. Assim como talvez o meu próprio animalzinho de estimação fica à porta implorando com os olhos que lhe dêem alguma coisa – qualquer coisa! – para comer naquele momento.
Eu amo o meu bichinho. Será que poderia vir a amar um mendigo?
Uma vez dei umas moedas a um deles, enquanto guardava na carteira umas duas notas de cinqüenta reais (cinqüenta reais!). Ele sorriu bem aberto, e eu fiquei com uma felicidade hipócrita de pessoa caridosa. Fiquei feliz mesmo.
E...
...me ocorreu que ele poderia ser um bêbado!
Pronto, dei dinheiro para a cachaça, alimentei um vício, eu que queria tanto ser uma alma caridosa!
Pensei bem em quem era eu para julgá-lo. Pobre coitado: ele ou eu?
Sem resposta, resolvi aliviar ainda um pouco mais a consciência (será que não deveria deixá-la mais pesada, não?). E o que ele iria comprar quando juntasse algum dinheirinho?
Pão.
Pão francês.
Por que com um pãozinho barato, ele iria a algum restaurante barato, esperaria o último frango barato da televisãozinha de cachorro ser vendido. Então o atendente do estabelecimento lhe daria as sobras de pele que caíssem durante o processo giratório – o espetáculo dos cães sem endereço. E, então eu sabia, também dos homens sem endereço!
Ah, e fugindo da discussão de fim de jantar de domingo, eu me lembrei do sorriso simpático – sim, simpático - do mendigo. Então pensei que ele ficaria feliz com os restos largados sobre o prato azul. E a glutonice (se ele soubesse o significado dessa palavra, ou se o ligasse a ela) a que me remetia o vinho, para ele seria na verdade o luxo!
... Aquele luxo inalcançável, tanto quanto o consenso em uma guerra oral - ao fim de um jantar de domingo...
Para o bem de minha consciência, da qual aqui já falei demais, seria bom que eu não tirasse conclusões desse fato, ou dessa triste associação que fiz:

Encerro por aqui.

Um comentário:

Dom Diego disse...

"[...] Fui aos alforjes, tirei um colete velho, em cujo bolso trazia as cinco moedas de ouro, e durante esse tempo cogitei se não era excessiva a gratificação, se não bastavam duas moedas. Talvez uma. Com efeito, uma moeda era bastante para lhe dar estremeções de alegria. Examinei-lhe a roupa; era um pobre-diabo, que nunca jamais vira uma moeda de ouro. Portanto, uma moeda. Tirei-a, vi-a reluzir à luz do sol; não a viu o almocreve, porque eu tinha-lhe voltado as costas; mas suspeitou-o talvez, entrou a falar ao jumento de um modo significativo; dava-lhe conselhos, dizia-lhe que tomasse juízo, que o "senhor doutor" podia castigá-lo; um monólogo paternal. Valha-me Deus! até ouvi estalar um beijo: era o almocreve que lhe beijava a testa.

— Olé!, exclamei.

— Queira vosmecê perdoar, mas o diabo do bicho está a olhar para a gente com tanta graça...

Ri-me, hesitei, meti-lhe na mão um cruzado em prata, cavalguei o jumento, e segui a trote largo, um pouco vexado, melhor direi um pouco incerto do efeito da pratinha. Mas a algumas braças de distância, olhei para trás, o almocreve fazia-me grandes cortesias, com evidentes mostras de contentamento. Adverti que devia ser assim mesmo; eu pagara-lhe bem, pagara-lhe talvez demais. Meti os dedos no bolso do colete que trazia no corpo e senti umas moedas de cobre; eram os vinténs que eu devera ter dado ao almocreve, em lugar do cruzado em prata. Porque, enfim, ele não levou em mira nenhuma recompensa ou virtude, cedeu a um impulso natural, ao temperamento, aos hábitos do ofício; acresce que a circunstâncias de estar, não mais adiante nem mais atrás, mas justamente no ponto do desastre, parecia constituí-lo simples instrumento da Providência; e de um ou de outro modo, o mérito do ato era positivamente nenhum. Fiquei desconsolado com esta reflexão, chamei-me pródigo, lancei o cruzado à conta das minhas dissipações antigas; tive (por que não direi tudo?) tive remorsos."

Memórias Póstumas de Brás Cubas/XXI