segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

No meu devido lugar - II


O Amor, Quando Se Revela

O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar p'ra ela,
Mas não lhe sabe falar.
Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há-de dizer.
Fala: parece que mente...
Cala: parece esquecer...
Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
Pra saber que a estão a amar!
Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!
Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar...

[Fernando Pessoa]

No meu devido lugar - I


Sonnet XVII

Who will believe my verse in time to come,

If it were fill’d with your most high deserts?

Though yet, heaven knows, it is but as a tomb

Which hides your life and shows not half your parts.


If I could write the beauty of your eyes

And in fresh numbers number all your graces,

The age to come would say, ‘This poet lies;

Such heavenly touches ne’er touch’d earthly faces.’


So should my papers, yellow’d with their age,

Be scorn’d, like old men of less truth than tongue,

And your true rights be term’d a poet’s rage


And stretched metre of an antique song:

But were some child of yours alive that time,

You should live twice, in it and in my rime.


[William Shakespeare]

domingo, 30 de janeiro de 2011

Inúteis divagações sobre sacadas e esperanças

Ultimamente eu ando obcecado por sacadas.

A sacada não é casa. Também não faz bem e não parece mais segura que a parte de dentro. É o elo com o mundo de fora. É a forma que o apartamento tem de pedir desculpas pela clausura e a falta de perspectiva. E devo dizer que é um modo muito peculiar para se desculpar. Ao se projetar no vazio, expõe-me à sorte, denuncia-me. De novo: ela não tem pretensão alguma de se fazer casa ou de se fazer segura. Na verdade, ela mesma se oferece como plataforma para um último salto ornamental. Talvez o mais belo. Talvez a nota dez. O seu fascínio. A desculpa na forma de denúncia; da humilhante exposição ao mundo; do sussurro ao pé do ouvido: o convite ao livre arbítrio.

Na sacada posso ver que a esperança é a mais sem graça das brincadeiras divinas. E por que na sacada? Porque, como disse em outros termos, ela é o elo entre o que somos e aquilo que parecemos ser. É o suporte entre dois mundos. E entre eles, existe o vácuo no qual vivemos a maior parte de nossas vidas. Quero dizer, vivemos pouco o que parecemos e muito menos o que somos. Vivemos no vácuo, sem saber muito bem aonde ir. Só que a sacada nos compreende. Ela nos suporta e nos coloca em xeque. Assim como um noivo à espera da resposta, ela aguarda nossa decisão. E aí surge a esperança, a mais sem graça das brincadeiras divinas.

Assim, volto-me para minhas próprias e infinitas sacadas. São essas que surgem na alma; que rompem a clausura com alguns goles de pinot noir. São essas que me encantam. São essas que me projetam. São essas que me denunciam. Os elos com o mundo de fora. Pequenos espaços que não são casa. Nem transmitem segurança. Mas que devolvem a beleza da escolha; devolvem a capacidade de rir da esperança, aquela piada divina de mau gosto. Afinal, Deus escolheu nossas próprias sacadas para depositar o palhaço que pula da caixinha, a esperança. São essas as sacadas que aguardam minha decisão enquanto derivo no vácuo. São essas as sacadas que realmente me fascinam. E por essas é que ando obcecado.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

O olhar de Orfeu

Então eu finjo que os seus olhos não me dizem nada

E você esquece as palpitações que sente.

Vamos também ignorar suas borboletas abdominais

E sua mudança de expressão quando me vê.

Não quero saber o que não me disse,

Mas morre de vontade de dizer.

Faça somente o que precisa

Sem o beijo que quer dar.

Fuja da vertigem.

Mas lembre-se: Orfeu sempre olha pra trás.