segunda-feira, 7 de março de 2011

MinC e secretaria da economia criativa

Pretendo reproduzir aqui neste espaço um texto que escrevi para um amigo por email.

Sei que não é o espaço mais adequado, mas o assunto é urgente: o Ministério da Cultura passa por reformas no mínimo estranhas..

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O ministério da cultura não tem nada a ver comigo.

A Ana está parecendo ser mais uma mafiosa. Músico famoso no brasil é quase tudo mafioso.

Foi criada a secretaria da economia criativa. Ela quer sistematizar e controlar um processo intrínseco ao capitalismo, mas que só foi reconhecido tardiamente na esfera cultural.

O processo é aquele no qual o capitalismo transforma tudo em produto.

Logo, música, filme, quadro, foto, etc, depois de arte, viram produto.


Uma vez identificado que arte vira produto, que é trocado por dinheiro, que entra na conta de receitas dos países, e de renda dos cidadãos, o MinC decidiu sistematizar, controlar, e potencializar esse processo na esfera da cultura.

O resultado disso é que, provavelmente, o processo terá sua ordem invertida. E arte que virava produto tornar-se-à: produto a ser vendido como arte!...

Mais ou menos como aconteceu no cinema americano. Desde cedo, 1910, os americanos perceberam que podiam ganhar dinheiro com o filme. O cinema americano foi construído em cima de uma indústria com fins lucrativos, exatamente como outra qualquer, como a de automóveis, ou computadores. (Não é por acaso que os judeus estão desde o princípio por detrás do cinema americano)

Mas os americanos são menos hipócritas que a máfia brasileira. Eles sempre colocaram um adjetivo nos filmes: filme de entretenimento, newsreel (atualidades), etc. Eles não vendiam o filme como arte, mesmo sabendo que o filme poderia ser uma arte, e que muitos que estavam envolvidos buscavam o lado artístico. etc.. Depois, mais recentemente as coisas mudaram, mas não nos interessa.

O Brasil, que diz ser o país do futuro, viu o futuro passar e nem percebeu. O futuro do Brasil são os anos 50 e 60, quando o país produziu o produto "da mais alta capacidade humana", como bem observou Tom Zé, a bossa nova. Depois ainda teve o cinema novo, e a tropicália...

De lá pra cá nós nos afundamos.. Mas pelo menos somos otimistas.

O MinC vai afundar ainda mais o Brasil, porque nós só somos capazes de produzir cultura e alimento, mas pelo que se viu nos últimos anos, em breve só seremos capazes de produzir alimentos. Principalmente agora que o Minc entrou pro lado dos grandes estúdios fonográficos e tirou o suporte ao creative commons, ou seja, tirou o suporte à criatividade.

Se a política da secretaria da economia criativa der certo, vamos ganhar muito dinheiro, não vai resolver a desigualdade, mas vai amenizar. Como no caso do cinema americano. Mas quem quiser ouvir boa música, por exemplo, não vai mais procurar as músicas brasileiras, como os cinéfilos se enjoam logo dos filmes dos grandes estúdios americanos.

Mas tem tudo pra dar errado, só que isso já é outra história.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Aqui estou, de novo...

Já que meus colegas resolveram voltar a dar as caras por aqui, resolvi também dar uma aparecida - depois de um longuíssimo tempo sem postar nada.
Em 2010 tive a correria, que não foi pouca, como desculpa pelo sumiço. Não me lembro de ter escrito uma única crônica que prestasse. Poemas? Acho que lá uma meia dúzia, talvez. Mas tudo bem meia boca, para falar a verdade.
Não que a inspiração tenha baixado agora, e eu tenha escrito alguma coisa brilhante. (NOT!) Não é esse o caso. Mas, enfim, para não enferrujar de vez (já que estou morrendo de medo de não conseguir escrever mais), vamos lá:

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Produto Orgânico

Eu digo

à calma
o bom do dia

que não se preocupa
por onde trombar

no trânsito
de almas
de tombos ao chão
aspereza
de rir

agre doce
sorriso
colhi
pétalas

que me joga

poeta

do asfalto
farto

de todo dia
tropeçar

em pressa.

No que se deve
ser
mais rápido

adiante

- Apressa!

- trombar a perfeição
inventada
de pétala de naylon.

Desiludir sintética
a fibra esgarçada,

a minha gargalhada
(tenta)disfarçada,
(chora) desgraçada,

mais adiante
se cala

(acomodada).

Noutro dia
na calma se tropeça

quem sabe
se não em flor inteira
d'uma verdade
que se arremessa
em verde confessado,

descanso d'alma
que verso abraça?

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Discordâncias


A beleza das palavras de amor

Não está no canto ou no silêncio dos olhares,

Mas no despertar da comunhão dos lábios.

O peso da nossa saudade

Não está precisamente na ausência,

Mas em nossas lembranças, tão vivas.

O encanto da relação que se resume nas palavras não ditas

Não está em não as dizer,

Mas na iminente possibilidade de dizê-las.

A sabedoria do meu coração

Não está no nexo dos meus sentimentos,

Mas na incoerência própria dos corações humanos.


Então

Eu quero um beijo,

Eu quero a presença,

Eu quero dizer e ouvir dizer,

Eu quero a incoerência.


Caso contrário, não quero!

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

O crime perfeito


Cada amante ama à sua maneira.

Cada amor é impressão digital.

Mas com a experiência de um ladrão velhaco,

Alguns amantes nos furtam o fôlego.

Levam-nos o coração.

Roubam nossa alma.

E não deixam sua marca.


Mas eu não quero um crime perfeito.

Quero as tuas impressões em mim.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

No meu devido lugar - V

Timidez

Basta-me um pequeno gesto,
feito de longe e de leve,
para que venhas comigo
e eu para sempre te leve...

- mas só esse eu não farei.

Uma palavra caída
das montanhas dos instantes
desmancha todos os mares
e une as terras mais distantes...

- palavra que não direi.

Para que tu me adivinhes,
entre os ventos taciturnos,
apago meus pensamentos,
ponho vestidos noturnos,

- que amargamente inventei.

E, enquanto não me descobres,
os mundos vão navegando
nos ares certos do tempo,
até não se sabe quando...

e um dia me acabarei.

[Cecília Meireles]

No meu devido lugar - IV

Meu Sonho


Parei as águas do meu sonho
para teu rosto se mirar.
Mas só a sombra dos meus olhos
ficou por cima, a procurar...
Os pássaros da madrugada
não têm coragem de cantar,
vendo o meu sonho interminável
e a esperança do meu olhar.
Procurei-te em vão pela terra,
perto do céu, por sobre o mar.
Se não chegas nem pelo sonho,
por que insisto em te imaginar?
Quando vierem fechar meus olhos,
talvez não se deixem fechar.
Talvez pensem que o tempo volta,
e que vens, se o tempo voltar.

[Cecília Meireles]

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

A física do amor não correspondido

O ponto A declara seu amor ao ponto B.

Logo, do ponto A, a fonte primária,

O amor segue sua trajetória linear rumo ao ponto B.

Ao atingir a superfície de B, dois fenômenos acontecem:

A reflexão, também conhecida como amor não correspondido;

E a refração, que pode desviar o amor de seu objetivo.

Nesse último caso, o amor pode parar no estômago,

E então nasce a paixão.

Pode também parar mais abaixo, o que causará excitação.

Mas mesmo não correspondido, parte do amor deve estar em B.

No meu devido lugar - III


A Arte de Amar

Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.

A alma é que estraga o amor.

Só em Deus ela pode encontrar satisfação.

Não noutra alma.

Só em Deus — ou fora do mundo.

As almas são incomunicáveis.

Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.

Porque os corpos se entendem, mas as almas não.


[Manuel Bandeira]

Sobre esperanças e verdades

O que nos resta quando nos tiram toda a esperança? O choque de realidade é o meu melhor palpite. O confronto com a impossibilidade e a inexistência de alternativa nos liberta. Dá alívio. Devemos admitir: a esperança é um fardo. É o próprio peso. Ou melhor: é a prisão de vidro, onde se tem noção da realidade do entorno, mas não se pode experimentá-la porque preso. Quando nos tiram toda a esperança, portanto, ganhamos a liberdade.

Se aqueles que nos desesperançam também são aqueles que nos libertam, aqueles que nos dão esperança são também aqueles que nos trancafiam. De fato, não há presente mais amargo que a esperança. Lembro sempre dos pobres troianos. Ilhados. Como haveriam de ganhar a guerra? Pior do que o cavalo, os gregos deliberadamente deram a esperança. Foram deliberadamente cruéis.

O presente mais doloroso, no entanto, vem daqueles que não querem presentear; daqueles que não querem dar esperança, mas que, agindo assim, enchem de flores os nossos pensamentos. É o trair-se ingenuamente doloroso. É a delação, em nome da amizade, do amigo de infância (para o seu bem; para o meu bem). É aquele “não” que nunca se pareceu com um “não”. O “não” com a cara do “sim”. Essa é a maior dor, que causa a oxidação da alma. A dor da esperança que aprisiona.

O que me leva a crer que só teremos paz quando imperar a verdade. Especialmente a nossa verdade, capaz de derrubar as paredes de vidro. A verdade que sufoca a esperança. A verdade que é o antônimo da esperança.

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

No meu devido lugar - II


O Amor, Quando Se Revela

O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar p'ra ela,
Mas não lhe sabe falar.
Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há-de dizer.
Fala: parece que mente...
Cala: parece esquecer...
Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
Pra saber que a estão a amar!
Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!
Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar...

[Fernando Pessoa]

No meu devido lugar - I


Sonnet XVII

Who will believe my verse in time to come,

If it were fill’d with your most high deserts?

Though yet, heaven knows, it is but as a tomb

Which hides your life and shows not half your parts.


If I could write the beauty of your eyes

And in fresh numbers number all your graces,

The age to come would say, ‘This poet lies;

Such heavenly touches ne’er touch’d earthly faces.’


So should my papers, yellow’d with their age,

Be scorn’d, like old men of less truth than tongue,

And your true rights be term’d a poet’s rage


And stretched metre of an antique song:

But were some child of yours alive that time,

You should live twice, in it and in my rime.


[William Shakespeare]

domingo, 30 de janeiro de 2011

Inúteis divagações sobre sacadas e esperanças

Ultimamente eu ando obcecado por sacadas.

A sacada não é casa. Também não faz bem e não parece mais segura que a parte de dentro. É o elo com o mundo de fora. É a forma que o apartamento tem de pedir desculpas pela clausura e a falta de perspectiva. E devo dizer que é um modo muito peculiar para se desculpar. Ao se projetar no vazio, expõe-me à sorte, denuncia-me. De novo: ela não tem pretensão alguma de se fazer casa ou de se fazer segura. Na verdade, ela mesma se oferece como plataforma para um último salto ornamental. Talvez o mais belo. Talvez a nota dez. O seu fascínio. A desculpa na forma de denúncia; da humilhante exposição ao mundo; do sussurro ao pé do ouvido: o convite ao livre arbítrio.

Na sacada posso ver que a esperança é a mais sem graça das brincadeiras divinas. E por que na sacada? Porque, como disse em outros termos, ela é o elo entre o que somos e aquilo que parecemos ser. É o suporte entre dois mundos. E entre eles, existe o vácuo no qual vivemos a maior parte de nossas vidas. Quero dizer, vivemos pouco o que parecemos e muito menos o que somos. Vivemos no vácuo, sem saber muito bem aonde ir. Só que a sacada nos compreende. Ela nos suporta e nos coloca em xeque. Assim como um noivo à espera da resposta, ela aguarda nossa decisão. E aí surge a esperança, a mais sem graça das brincadeiras divinas.

Assim, volto-me para minhas próprias e infinitas sacadas. São essas que surgem na alma; que rompem a clausura com alguns goles de pinot noir. São essas que me encantam. São essas que me projetam. São essas que me denunciam. Os elos com o mundo de fora. Pequenos espaços que não são casa. Nem transmitem segurança. Mas que devolvem a beleza da escolha; devolvem a capacidade de rir da esperança, aquela piada divina de mau gosto. Afinal, Deus escolheu nossas próprias sacadas para depositar o palhaço que pula da caixinha, a esperança. São essas as sacadas que aguardam minha decisão enquanto derivo no vácuo. São essas as sacadas que realmente me fascinam. E por essas é que ando obcecado.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

O olhar de Orfeu

Então eu finjo que os seus olhos não me dizem nada

E você esquece as palpitações que sente.

Vamos também ignorar suas borboletas abdominais

E sua mudança de expressão quando me vê.

Não quero saber o que não me disse,

Mas morre de vontade de dizer.

Faça somente o que precisa

Sem o beijo que quer dar.

Fuja da vertigem.

Mas lembre-se: Orfeu sempre olha pra trás.

domingo, 8 de novembro de 2009

Psiquiatria

Alheios vão os próprios
afetos
correr dentre veias
assustadas.

À imaginação se
incorporam
abraços

desprendidos de
saudades onde não
se pode buscar
a negra calma
dos comprimidos
receitados.

Abracei-te quando
não estavas
perto
deste-me tua boca
e ausência.

Como insônia
eu o tomo
ao meu próprio
defeito
medicações
de solidão.

E quando me fizer
adormecer
cansaço
não me puder
presentear
com fuga
meu torpor será
teu apoio
onde debruçarem
no divã
minhas as angústias
de tantos devaneios.

Meu amor é
ausência,
tão logo minhas
mãos nada me tocam
à boca
solidão de
engolir negras
as tarjas
de exclamação.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Desculpas

Se fosse possível
Ao mar, atirar-me
E acariciar com vermelho
O ego dos deuses,
Então eu o faria,
E guardaria em gaveta
Toda a vergonha trancada
Por cada não dito.

Queimaria também os meus livros,
Todos que tratam de amor,
Em ritual simbólico
De sacrifício humano,
Eu mesmo.

Trocaria o doce dos rios
Por mais um gole de saliva sua
E todo sal dos oceanos
Por mais um gole de suor seu.

Renunciaria a suspiros,
Amordaçando minha ânsia
Ao despejar em diarréia
O amarelo-covarde, a-
-tormenta do medo.

Ah! Quanto eu faria, e muito mais,
Se o condicional fosse um tempo,
Apenas um tempo verbal,
Que não dependesse, em tudo,
De minha rarefeita vontade,
Humana
E acuada.

sábado, 26 de setembro de 2009

PRECLUSÃO

Perco
do tempo
ilusão de voltar.

Ontem disseram-me:
- Agora!
antes percebesse

do tempo

não me apunhalasse.

Fecha-se porta:

o que será do feito
que houve
em tempestade

meu lamento não basta:

- Imtempestivo.

Será mesmo?

Ou que me ilude
angústia em processo

não tramita a vida?

Não transita
em exclamação
julgado meu
que não se fez.

sábado, 12 de setembro de 2009

Deus

Não há relevo em frases
De dentro dos parênteses

Também ninguém se importa
Com as notas de rodapé

Reticências foram esquecidas há muito

Tremas já extintos

Mesmo as vírgulas
Não mais oxigenam a vida

Nada vibra mais com a força original
De um legítimo erre espanhol

Exceto, talvez, para o escritor.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

ALUCINANDO!

Com dezessete anos eu acreditava que um dia poderia, quem sabe, tocar Chopin com perfeição. Não que esse fantástico evento não possa hoje acontecer mas, vou ser realista, na hora de traçar a bagunça da minha vida, os deuses não tiveram a bondade de jogar um pouco mais de música nela.
Tanto que naquela época, auge de várias das minhas ilusões (uma idade bastante propícia para isso, convenhamos), tive uma espécie de tendinite bastante bizarra. As pessoas geralmente tem problemas no pulsos, braços e antebraços, talvez. Pois que os deuses resolveram brincar comigo e travaram meus dois dedos... medianos. Sim, bastante sugestivo.
Cheguei a imobilizar a desgraça do dedo do meio da mão direita (pois é, sou canhota!). Como eu não conseguia esticá-lo, foi enfaixado assim..., meio curvado - como um gancho. Dois amigos pentelhos logo notaram a semelhança. Não perderiam, claro, a ótima oportunidade de tirar uma com a minha cara - que da raiva ia a feições de choro.

"Mas você ainda pode tocar xilofone, Gancho!"

É claro que a minha resposta a esse 'consolo' não era nem um pouco educada (já que é pouca toda a falta de educação necessária para dar pitacos nos bons amigos).

Em todo o meu melodrama, a tragédia se desenhava como algo irreversível:

- Nunca mais o piano, nunca mais... - lágrimas e mais lágrimas...

(...e os deuses iam estreitando os caminhos cheios de notas em tons maiores.)

Um ortopedista especializado em mãos, meio como a tia velha que lê a sorte, viu nas minhas que eu não poderia mesmo ser pianista. O nome do pirepaque veio como sentença: dedo em gatilho. (O gancho!) Em estágio pouquíssimo avançado (ainda que doesse horrores quando eu tentava estender... os dedos!). Não era caso cirúrgico. Mas - sabe como é, né? - melhor estudar menos piano, descansar mais as mãos e por que não fazer uma yôga, um pouco de alongamento...

Cortei os exercícios de técnica do Cortot(não foi grande sacrifício, eram mesmo chatíssimos!). Depois, escolhendo, para não estudar demais, entre ler uma peça de Vila Lobos e montar um acordezinhos chinfrins de quem está aprendendo a brincar com cifras, passei a visitar meu professor de música popular todas as semanas com a mesma cara de "sinto muito".
A peça do Vila saiu - e é o melhor que ainda hoje consigo arrancar de um piano. Chegaram os tempos do vestibular, e a paranóia das horas ao lado dos livros de exatas. Aprendi a gostar até da física, que para mim estava no mesmo patamar que o demo.

- E meu professor de piano popular continuava olhando para mim como quem lamenta ver alguém perdendo tempo.
Aí então constatei que seria assim: sem mais aulas de piano. E a tendinite tornou-se um perfeito bode expiatório.

Então tive a brilhante idéia de escrever um conto - que nunca terminei. Uma virtuose (que nunca fui) um dia acordava e, sem saber por que, não conseguia mais tocar. Audições mil marcadas, tanta tanta gente querendo ouvi-la levantar a alma pelas teclas... Os anos de estudo! As possibilidades - meu deus, que horror pensar nas possibilidades que então se tornavam impossíveis...
E ela... simplesmente não entendia por que. Aí então aconteceria algo batante banal, coisa de pretensa escrivinhadora pouco criativa: a personagem passaria a tarde inteira meio que como bêbada, com sucessivas epifanias (todas sem grande sentido, ou não seriam epifanias). Precisa esclarecer as coisas dentro da sua própria cabeça.

Então resolve ficar bêbada de verdade:

Sabe aquela coisa clichê do - estou sozinha, vou a um lugar esfumaçado à meia luz, sento ao lado de um balcão de granito escuro e converso com um garçom de TV americana vestindo um smoking chinfim...? Exatamente!

Ela chega e pede uma garrafa de vinho tinto. Seco. Por que tem que ser dos bons.
Um copo só, sim? (E daí se vai beber a garrafa inteira sozinha?)

Ela, a taça, e um vinho très chique, que ela não sabe por que é chique, mas o que importa mesmo é os outros considerarem chique para invejá-la por seu status superior. Logo não teria mais um centavo mesmo, já que não poderia trabalhar mais. Aliás, não poderia mais se divertir (piano, o seu maior prazer, mais que qualquer outra coisa, qualquer outra coisa. Ponto!).

Era então um cadáver que segurava a taça e despejava o líquido escuro nela.
Mas... que coisa! Um cadáver com os dedões voltados para fora?

(...Se um cara pode fazer sua personagem acordar como uma barata, por que é que a minha não pode acordar com as mãos trocadas?... É, é essa porcaria mesmo o que você leu).

Achou graça. Sempre confundira a direita com a esquerda (estou, neste momento, falando da personagem, ou de mim mesma, que, como eu disse, sou canhota?). O vinho era bom. Bom! Ela até conseguia conversar com os deuses e pensar nesse seu maravilhoso momento como uma ironia, castigo a um personagem chato que em uma série de TV americana - dessas em que aparecem barmans de smoking vagabundo - provoca risos no bando de telespectadores preguiçosos que desperdiçam seu tempo dando atenção a coisas estúpidas como uma série ruim de TV americana).

...

- Preparem-se, agora o final dramático:

Não, ela não sonhou com nada, e nem acorda em um hospital psiquiátrico (calma, acho que ainda não estou tão sem imaginação assim). Levanta-se perfeitamente sã no dia seguinte.

No dia seguinte!

Sem lembrar-se de como voltou para casa (nesse momento lhe ocorre um certo flashback desagradável com o barman, mas prefere pensar que ele foi uma alucinação muito verdadeiramente forte, tanto que um papelzinho rasgado com o número de telefone dele surgiu no bolso traseiro esquerdo de sua calça jeans, que estava jogada do outro lado do quarto), mas sã.

Sã a ponto de achar um absurdo ter a certeza de que notara que suas mãos estavam trocadas (e de considerar a existência de qualquer incidente com o barmam de terno chinfim). Pois então os dedos estavam no lugar certo (sem as mãos trocadas ou a ridícula posição de gancho mediano à direita!).

Foi ao piano. Tentou tocar alguma coisa.

Nada.

O juízo disse-lhe: vá ao médico.

Foi. E a sentença do guru dela foi bem mais benevolente que a do meu. Fadiga muscular, querida. Descanse por uma semana. Tragédia: com sem tocar, deixaria de ser a nº blá blá blá no ranquing de blá blá blá dos melhores dos melhores.

Mas nunca, porém, deixaria de tocar Chopin com perfeição.

Eu... Bom, nunca quis ser pianista por profissão, só por gosto. E por uma tendinite bizarra e vontade de fazer algo tão emocionante quanto estudar direito, deixei de estudar piano.

Bebo de vez em quando e nunca vi as minhas mãos trocadas. Mas às vezes tenho a sensação que de fato alguma coisa está trocada em mim. Será que dentre os caminhos que os deuses me disponibilizaram fui teimar em escolher o errado (aquele das aulas mais soníferas, dos textos mais prolixos, da maior presença de distancionamento emocional da realidade... - tá peguei pesado: não vou dizer que é o curso que comporta o maior número de psicopatas homicidas suicidades, porque a minha grande realização é encontrar na Faculdade os amigos mais fantásticos).

(continuando)se alguma coisa está trocada, fui eu que escolhi trocar. Ao menos a minha personagem escolheu beber e alucinar uma aberração para divertir-se com a própria frustração.

Está aí: preciso alucinar alguma aberração. Depressa, porque quero tudo para ontem!

Para ontem!

Alguém aí tem alguma sugestão?

sábado, 29 de agosto de 2009

Resumo II

A baguete ainda quente
A manteiga derretida
O cheiro senil do café
A tarde na sacada
O décimo andar
O olhar para baixo
O domingo:

Um salto imaginário

Em um mundo de ânsias,
Um copo de vinho
E dois analgésicos.

sábado, 22 de agosto de 2009

Preguiça

Ontem fez frio. Quando, encerrando a jornada do dia para longe dos compromissos e obrigações, botei o pé para fora do ônibus, senti uma baforada de ar úmido que me fez bater os dentes. Enfiei as mãos nos bolsos já arreganhados da minha blusa de lã lilás e andei cinco penosos quarteirões de vento até chegar ao meu apartamento.
Apesar de fria, ainda assim era uma sexta feira, e me questionei se não deveria providenciar para logo estar bem longe dali. Para dizer a verdade, e sem ter o menor medo de me passar por brega (ou melhor, enfrentando todo o meu medo de me passar por brega), seria deprimente outra sexta feira naquele apartamento que mais parece um recorte isolado de tudo. Naquele apartamento - em que eu já tanto fiquei sozinha, na época (nem tão distante assim) em que raramente fazia o esforço de recorrer ao telefone para que as pessoas se lembrassem de mim. Ficar só às vezes é uma questão de pura preguiça. Preguiça de sair de casa, que seja, preguiça de expor-se, e expor-se também ao erro - nesse aspecto a nudez do corpo seria o de menos.
Enfim, fato é que ontem qualquer tentativa de fugir de mim parecia estar tão preguiçosa quanto eu mesma já fui, ou talvez ainda seja. Encontros entre amigos são sempre bons e esse foi o dia dos desencontros - cada um queria uma coisa, cada um no seu lugar. Por fim, conformei-me, pensei nas despesas de fim de mês e constatei que tinha também preguiça de passar dez dias na pindaíba para compensar a balada de sexta feira.
Fiz o que, de costume, seria mais a minha cara. Enfiei-me nos cobertores. Antes tinha pensado em ver um filme. Pena que nenhum dos DVDs da pilha que tenho em casa não conseguiram me fazer sentir menos preguiçosa, ou pelo menos despertaram-me da vontade de assisti-los. A solução foi continuar a leitura de um livrico de bolso que comprei na semana passada.
Eu, o livrico, os cobertores e a minha preguiça. Penso se faria alguma diferença, o que mudaria, se naquele minuto me acordasse de todo esse marasmo alguma voz de timbre morno e certa sensualidade, naquela tonalidade de andar de mãos dadas.

(Tonalidade de andar de mãos dadas:

A minha preguiça me impede de soltar um suspiro.)

Como?

...

E vou ciscando palavra aqui palavra ali no livro que está solto no meu colo. Não estou tão interessada nele assim, na verdade. Só mais uma história de casal. Uma história de um casal confuso. Estivessem os dois sob o meu cobertor, acho que continuariam tão preguiçosos quanto eu. A identidade de um não é a do outro.

E quando apago meu abajour penso que talvez solidão não seja apenas uma questão de preguiça sentimental. Ou ainda que a preguiça sentimental não vive só no meu apartamento só, em uma gelada sexta feira a noite.




[PS: Para os curiosos, o livro é "A Identidade" - Milan Kundera...]