sexta-feira, 17 de abril de 2009

...




Quente a tua mão
na minha
o teu tempo
enlaçado ao meu.

Dividir dos mesmos
olhos
o mesmo sentir.

Ah, que vontade
do abraço
que não haverá
mais
ficarem cintilantes
as recordações
da voz o
doce entornar
das palavras assoprar
otimismo
escapa
dos olhos
lágrima.

Distante
a tua mão

da minha
semelhança
tocar o mundo
com dedos que
atentam aos tons
verdes de ser.

Dedos que não
cabem
à despedida
ainda que
se afeiçoem
na tua ausência
essas

Saudades de Abril.






"O inevitável dá as caras de vez em quando. E a gente não tem como deixar de lamentar que seja assim - a humanidade pesa com o tempo. Ninguém descobriu ainda qual seria essa fuga que muita gente deseja desde sempre, e que eu desejaria ter agora (se ela fosse possível): Sendo assim, pois que se aceite assim.
Tudo bem:
Alguma coisa me diz que não é isso o que importa: o limite carnal do tempo não pode restringir a poesia que transcende pela alma."




- Para o meu avô, Fioravante Sarti, o 'Vô Fiore'. Quem teve a sorte de conhecê-lo sabe, um Iluminado: sempre!

sexta-feira, 10 de abril de 2009

Conversão

Dona Ana toma seu terceiro comprimido pela noite. Tira o pirex de cima do copo de requeijão em que repousa fresca água. Bebe três pausados goles. O líquido desce áspero, a traquéia protesta - três vezes dá dos seus trancos.
Respira – Ah! - e enxuga dos olhos cheios de remela a última lágrima do dia.
Tateia pelo controle remoto que está sobre o criado mudo. Toma cuidado para não derrubar o copo, o pirex e os tercinhos de madripérola que sua prima antipática trouxe de Fátima. Encontra-o, sentindo os dedos cansados grudarem na cola do velho durex colocado há meses para segurar as pilhas no seu devido lugar.
Faz três vezes o sinal da cruz.
- Que Nossa Senhora rogue por todos, e que Deus ilumine os pecadores.
Amém. -
Mais três vezes o sinal da cruz.
E o seu corpo gordo roda de um lado para o outro na velha cama de casal, em que só ela se deitava já há tempos.

- Será que alguém deu comida para o coitado do Fredi?

Fica imaginando o pobre do viralata, com a carinha focinhuda sobre as patinhas encardidas, o bigodinho cheio de terra, e aqueles enormes olhos de gente sozinha. Ah, mas que absurdo chamar cachorro de gente!
Estava bem magrinho, era verdade. Mas também não morreria de fome.
E depois... Se fosse levantar para dar comida ao coitadinho, será que teria de rezar de novo? Isso nunca tinha acontecido. Imaginava só o que diria o seu confessor se soubesse que ela, uma senhora tão católica, tinha ido dormir sem fazer a oração. Nem percebe, mas faz novamente o sinal da cruz.
Talvez devesse levantar-se, dar comida ao coitado do animal, e então rezar novamente. Se fosse alimentar o animal e rezasse de novo... Ah, isso seria porque sua primeira oração da noite não tivera muito de fé.
(Ai, ela bem se lembrava de quando aquele padre charmoso do cabelo com rinsagem acaju fez um sermão digno de profeta, e disse claramente só os infiéis é que rezam sem fé.)
Rolou de novo na cama.
- Ai, como fazia calor!
- Ai, coitadinho do Frédi!
Mas, com ele, ela logo se entendia. Daria-lhe uns nacos de uma carne velha esquecida no refrigerador e pediria que a preguiçosa da empregada o levasse para passear. Com Deus é que ela não sabia como podia ser. Pois o cachorrinho, fosse como fosse, estava sempre ali, com seus grandes olhos, suas patas encardidas e o rabinho abanando, implorando por carinho, enquanto ela fazia pouco caso dele enquanto assistia aos chatíssimos programas de TV que se arrastavam por tarde intermináveis - Ai, como era difícil essa vida de viúva aposentada!
Mas Deus...não tinha jeito de saber se Ele a ouvia: nunca tinha parado para pensar nisso. Muito provavelmente, ele teria mais o que fazer do que ouvir as baboseiras de uma velha chata e sozinha.

Verdade que ela nem sempre fora assim.

Era uma moça bonita - olhos verdes, pele morena, e uma cinturinha muito fina, que os rapazes gostavam de tocar enquanto ela fingia nem perceber. Adorava dançar: tinha sapatos de tiras lilases que giravam pelo salão enquanto um sorriso explodia pela face limpa de culpas ou afãs esquecidos. Era menina fazia o que desejava. Deixava-se levar pelos rapazes para trocar beijos a trás da Igreja e não escondia a maior das caras feias quando a mãe lhe torrava a paciência para que se arrumasse logo – já era hora da missa!
Enquanto o padre partia a óstia no altar, trocava comentários venenosos com a amiga que sempre a acompanhava, e que fazia pouco caso das aventuras dela, não deixando, porém, de encontrar graça nos seus relatos. Era essa a amiga que lhe emprestava os romances que mamãe não a deixava ler, e que lhe relatou pela primeira vez como era bom beijar um moço bonito. Foi ela também que lhe fez cara feia quando logo lhe contou que pensava em se casar com aquele rapaz do sobrado em frente à praça.
- Credo, Ana. Ele nem é tão bonito, e tem a cabeça do tamanho de um alfinete.
E a Anoca respondeu que ele ganhava tanto e tanto, e que o pai tinha tal e tal fazenda assim e assado.
- Credo, Ana. Mas é uma família mais carola que a sua.
E a Anoca respondeu que dava um jeito no marido, e se jeito não tivesse, ela fazia de noite o que bem entendesse, e ele que de dia acreditasse dormir com uma tontinha.
A amiga censurou-a ainda mais. Não houve o que tirasse de sua cabeça que deveria casar-se com aquele moço tão rico, mas tão vazio de si.
Era da família dona da cidade, e lhe daria os mais bonitos vestidos – para matar de inveja as maricotinhas que torciam o nariz para as costuras da mamãe.
No dia do casamento, chorou de soluçar. Perguntaram-lhe se estava triste. Ela respondeu que era a alegria de ver seu sonho realizado – enquanto a traquéia três vezes protestou, traindo-a com tons de profeta.
Dessa vez, mamãe é que pediu que não se apressa-se. Fez questão de ela mesma ajeitar a mantilha da bisavó sobre o rosto emocionado da filha.
A Anoca mal teve coragem de beijar o marido fulano de tal ao fim da cerimônia. Forçou-se a não olhar para o namorado de poucos meses, que já então era antigo. Vestia sapatos de um branco puro - que amordaçavam seus pés, ainda tão cheios de vontade de dançar.
Foi boa mulher. Lavou, passou, engomou e chorou. Deixava que o marido se deitasse sobre ela sempre que quisesse. Perdeu a coragem de sentir prazer no dia em que ele lhe perguntou porque ela gemera como uma vagabunda. A indiferença vestiu-se em asco. Os sapatos brancos passaram a massacrar seus joanetes.
Um dia teve um amante. Não podia mais rodar nos salões com seus calçados de tiras lilases, mas não temia pintar a boca de carmim. Quando lhe perguntavam o porquê da nova cor, respondia que era a alegria de ser mãe.
O marido não acreditou. Mas, também, pouco lhe importava. Só não pôde ficar quieto quando deu com o namorado da sua honrada esposa passando pela rua de sua casa. Disse duas palavras, talvez três, e o safado nunca mais apareceu. Ao entrar, presenteou a mulher com um tabefe, e pediu que ela mesma lhe esquentasse a janta.
O tapa doeu – “como uma vagabunda” - Tanto que ela precisava contar a alguém. Mas não havia mais amigas de ouvidos livres para entende-la. Mamãe diria, talvez, que o marido estava certo. Pensou até em confessar-se. Ah, nunca se confessava mesmo. Será que se arrependia?
- Então por que o tapa continuava a doer? (“vagabunda!”)
- E se contasse – tudo – ela mesma para Deus?

Foi mais fácil. Ele a ouvia em silêncio. Mais um pai nosso - e a ausência de palavras que a reconfortava. Depois ficou fácil dizer tudo aos sacerdotes, ao ‘falar’ servilmente com Quem Tudo Pode sentia-se pura, digna dos sapatos brancos que calçava. E, tão pura, não perdeu mais nenhuma missa. Viu os filhos crescerem sem que se esquecesse de lhes dizer que não se atrasassem para a Igreja.

Amém.

E Dona Ana rola e rola sua corpulência sobre uma cama de viúva. Como saber se Deus poderia escutá-la? Ah, melhor que ela não o contrariasse! O Fredi, ele vai ficar feliz com um pedaço de carne amanhã. Carne: ele não pede nada além disso! Ele nunca lhe deu um tapa!