quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Sobre um tipo genuíno de libertação*

Sempre tive uma mistura de medo e aversão às críticas literárias. Detesto moralismos de escrita, ou regras sobre escrever 'bem' - como se fosse possível qualificar todas as espécies do sentir humano. Só que meu orgulho, às vezes, me faz ter vontade de vestir certas idéias com feições de argumentos de autoridade: porque em uma ou outra hora me cansa ser sozinha nas minhas opiniões. Inclusive naquelas sobre uma das coisas de que mais gosto: boa literatura!
Às vezes sou leitora compulsiva. Se não tenho o que fazer, arranjo, e um bom romance já me dá muito o que imaginar. De vez em quando, repito algum que me tenha marcado - e é bom que se diga que nunca! é a mesma coisa.

No final do ano passado revisitei o Admirável Mundo Novo, de um tal Sir Huxley. Vi novamente um futuro em que pessoas são divididas em castas determinadas por genes de 
beleza, saúde, inteligência, ou de uma inferioridade sem vigor ou brilhantismos de raciocínio. Dos alfa aos ipsilones, uma coisa permanece a mesma: o pensamento se confina a uma série de frases em gravações repetidas durante um sono sem ambições. 
Querer mais que isso!? Que Ford perdoe os hereges!
E entre essas frases prontas, seres sem identidade respiram coerção - rumo à promiscuidade, literalmente... 
Sim, coerção, porque aquele incapaz de ser promíscuo, em tão 'admirável' lugar, é o imoral (algo bastante parecido com certos ransos de machismo tupiniquim, não?).
Impossível percorrer a história sem sentir a crítica de Huxley a esse mundo de promiscuidades. Seria então, ele mesmo!, puritano? A biografia do autor responde claramente: não! (e haja cocaína para enfatizar essa negação!).
Se essa resposta é uma negativa, qual seria, portanto, a explicação para tal crítica?

Não sei se Huxley leu Hesse. Mas eu li, e achei a respota. Não uma resposta correta, mas a minha resposta! - em uma edição de O Lobo da Estepe (que me caiu perfeitamente depois de reler a utopia às avessas de um tal lorde).

Harry Haller sentia-se meio burguês, doméstica, moral, intelectual e comodamente burguês, meio Lobo da Estepe: animal solitário, furtivo, desconfiado, inimigo declarado de tudo o que mais amava a sua outra parte acomodada. E a solução para alguém encurralado entre ser uma coisa, e ao mesmo tempo o seu perfeito oposto, nada mais poderia ser que entender que, se o ser humano pudesse ser dividido entre suas muitas partes, certamente o número de seus pedaços seria algo muito maior - e muito mais fantasticamente complexo - do que... dois!
E porque se precisava dar voz ao que têm de mais sincero em si, foi bom que o Lobo saísse de sua posição de recato e se apresentasse a si mesmo como alguém capaz, promiscuamente capaz, de rir.

Pode muito bem parecer existir toda discordância entre Huxley e Hesse. Crítica em um se lança á promiscuidade, em outro, ao puritanismo. A questão, porém, não está no que é melhor, mas no que não é sincero.
Em Admirável momento, tinham o oposto da adimiração os que se apaixonassem, assim como também os que questionassem, que se mostrassem inquietos, que tivessem vontade de gritar todo o descontentamento: que não poderia ser calado por um grama de soma. 
E o Lobo acreditava ter de se amordaçar manso, amordaçado em silêncio - ou cruelmente ácido, mesmo quando se admirasse sua vista com a delicadeza sem propósito de um vazo de pinheiros ao pé de uma porta simples.
Que o superficial não engane. Hesse e Huxley conversam em suaves vibrações de entrelinhas, que depois de percebidas se traduzem em uma agradável melodia. Limitar-se ao puritanismo de dividir a alma em duas, ou negá-la, fazendo da identidade um conjunto de crenças que são apenas frases repetidas inconscientemente é prisão! Moralismo que acorrenta o ser que por dentro quer sentir-se liberto. Devassidão que não respeita a vontade de um nostálgico suspiro...

...

E chego à conclusão de que bem, muito bem, encontro entre animais furtivos e mundos nem tão novos assim um pouco do meu próprio ver e sentir isso que costumam chamar 'moralidade':

Imoral é o que nos impõe outros - burgueses ou lobos, ou gramas de uma droga que finge tragar tudo o que for tristeza.

E não entendo o que pode haver de imoralidade no que for traço sincero de alma em expressão: simples exercício de um viver autêntico.

Gostaria de apresentar aos carolas a maravilha de um Grande Teatro, cheio de magia libertadora - em que cada um faz de si a sua própria vontade. E gostaria também de esfregar às fuças dos libertinos o sentimento de vazio que tantas vezes paira na Admirável solidão de tantos corpos juntos - sem que haja tempo para serem apresentadas umas às outras as almas.

Talvez eu seja mesmo gente de alma autoritária, ao menos com quem, também autoritariamente, relata os feitos alheios com vozes de censura. Mas para fazer impor esse meu horizonte de uma liberdade autêntica (a sinceridade de agir conforme o próprio sentir), eu cairia em contradição - o que não posso fazer: já assumi o compromisso de ser sincera comigo mesma.



*Depois de reler este texto (algumas vezes), percebi que certos pontos dele me cansavam. Não pelo que expresso em idéias, mas porque talvez a linguagem estivesse ela mesma muito presa para fazer juz ao que eu queria dizer. Só por essa coisa minha de querer também neste ponto ter alguma autenticidade, resolvi mecher aqui e ali - e não escrever como se fizesse uma tese pseudo-acadêmica (merda de praga, que costuma pegar muito bem em pretensos - e pretenciosos! - estudantes de direito!).  Assim, a última versão (essa que você acabou de ter a paciência de ler), foi (re)editada em 05 de dezembro de 2008.

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Luz Fantástica

"No Discworld, Morte era um tradicionalista que se orgulhava de seu trabalho e passava a maior parte do tempo em depressão, por não ser valorizado. Ele chamava atenção para o fato de ninguém temer a própria morte – mas a dor, a separação e o esquecimento – e dizia que não era justo atacar alguém apenas porque tinha órbitas vazias e um prazer secreto em realizar seu serviço. Também argumentava que ainda usava a foice, enquanto mortes de outros mundos já haviam investido em máquinas de ceifar".

A LUZ FANTÁSTICA, (pág. 103)
Terry Pratchett
Conrad Editora

sábado, 4 de outubro de 2008

Considerações sobre a cidade ad hoc

O sotaque vazio
É o maior dos milhões
Baldios transeuntes:
Os terrenos.

Beleza não há,
Nem orgulho pra ter
De viver monossílabo,
Todos pretos ou brancos.

Já o rio falecido deixou
A chuva viúva que segue
Chorando sobre muitos
Noés sem arcas.

As artérias caóticas,
No muito, entupidas,
Convulsivamente
Enfartam.

E em dias de abundantes
Horas de menos
É impossível ser feliz
Sob um céu sem estrelas.