quarta-feira, 22 de agosto de 2007

O jogo do bicho

Os dois eram os melhores amigos, daquela espécie quase extinta que nós raramente encontramos nos dias de hoje. Conheciam-se mais, um ao outro, do que suas próprias famílias os conheciam. Uma amizade que nasceu na infância, percorreu a juventude, transformou-os em compadres e até em avôs de um mesmo neto. Agora, a amizade havia amadurecido. Não precisavam de muitas palavras para alcançar o entendimento mútuo. Acima de tudo, respeitavam-se. Não havia registros de brigas, calúnias ou traição. Dava gosto de ver os velhinhos.

Naquela tarde, como em todas as outras tardes dos quarenta e sete anos precedentes, Seu Zé e Seu Osvaldo reuniram-se para especular, no botequim da esquina, as possíveis combinações do jogo do bicho para aquele dia. Se chegassem ao consenso, como era sabido pelos freqüentadores do local, nunca deixavam de ganhar um dinheirinho. No entanto, há quarenta e sete anos perseguiam, sem êxito, o primeiro prêmio.

Seu Zé disse ao amigo:
─ Eu sonhei que o Alemão tinha morrido.

Seu Osvaldo respondeu, angustiado:
─ Não brinca, Zé! Eu também sonhei com morte. O problema é que o morto era você.

Prontamente, seu Zé pôs termo à conversa, batendo três vezes na mesa do boteco:
─ Vira essa boca pra lá!

Cabe aqui esclarecer um ponto importante que faz parte da ciência do jogo proibido: sonha-se com morte, joga-se no elefante. E eles jogaram. Foi assim, então, que os amigos ganharam aquela bolada bem gorda. Elefante na cabeça! Um prêmio para a insistência de anos.

É de conhecimento geral que o destino tem por hábito ser inconveniente. Naquela mesma tarde, no caminho de casa, sem tempo de anunciar a boa nova à família, Seu Osvaldo foi pego de surpresa por um ataque cardíaco fulminante.

Seu Zé não se conformava. Inconsolável, chorava mais que a mulher e os filhos do finado. Custou muito tranqüilizá-lo. Contudo, conseguiram fazê-lo dormir.

A despeito de ter sido um sono curto, este foi revelador para Seu Zé. O velhinho sonhou com o amigo morto. Durante o transe, o finado Seu Osvaldo proferia ininterruptamente o seguinte aviso:
─ O Burro, Zé! Amanhã é dia de Burro!

Seu Zé entendeu o recado. No dia seguinte, tão logo acordou, foi ao botequim e, depositando extrema confiança no conselho do amigo, apostou todo o dinheiro que havia ganhado com o elefante da véspera. Após a aposta, era hora de velar o amigo.

Durante a manhã inteira, Seu Zé fitou o corpo sem vida, admirando, em seus pensamentos, aquele último gesto de carinho que o amigo tinha-lhe oferecido durante o sonho. Ele sabia que seria uma grande injustiça ver Seu Osvaldo partir sem uma despedida digna de rei. Afinal, o burro era uma barbada! O enterro seria no período vespertino e, portanto, seria possível saber o resultado ─ ainda que não precisasse, pois o amigo já havia adiantado ─ do jogo do bicho antes do evento. Com o prêmio, a homenagem a Seu Osvaldo seria grandiosa: carreata em carro de bombeiros, incontáveis coroas de flores e um último samba ─ tocado por orquestra, com violino e tudo.

A hora havia chegado. Para dizer a verdade, o enterro já estava atrasado. Todos aguardavam angustiados pela chegada de Seu Zé, conhecido por sua pontualidade marcante. A tampa do caixão ainda estava aberta, esperando para que ele se despedisse do finado. Felizmente, não houve tempo para que aquele momento se convertesse em uma espera repleta de tensão. Seu Zé tinha chegado.

Foi espanto geral. O amigo ainda vivo dirigiu-se, de cenho fechado, até o amigo sem vida e descarregou completamente a munição de sua arma no corpo estirado. O motivo: borboleta na cabeça. O burro não tinha aparecido sequer em um dos prêmios. Não se tratava de dinheiro. O fato era que Seu Zé tinha sido traído por Seu Osvaldo, o melhor amigo! Depois de tantos anos de amizade, não podia tolerar ou perdoar aquele desrespeito. Tinha sido sacanagem... E das boas! Quanta pequenez! Não havia desculpas. Não era dia do burro. Não ouviria de novo o nome do larápio. Matou para sempre o covarde amigo, que esperou morrer para ser morto.

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