quarta-feira, 8 de agosto de 2007

A sobrenaturalidade do futebol brasileiro

Aqueles que são capazes de ler o que escrevo dificilmente discordarão de mim: o brasileiro é o melhor jogador de futebol do mundo.
Para explicar a afirmativa, não serão discutidos os aspectos sócio-econômicos responsáveis pela formação de um grande estoque de mão-de-obra futebolística em nosso país. Também serão excluídas da discussão questões físicas, táticas e técnicas. Quero explicar o sucesso tupiniquim nos gramados abordando apenas uma única dimensão de nossos jogadores: a mística.
Vivenciamos um forte sincretismo religioso. Somos portadores de tradições antigas. Imaginamos o impossível. Acreditamos no fantástico e, não raro, ele acontece. Nossa sabedoria místico-popular é repleta de reflexões que nos ajudam a compreender as mais diversas situações cotidianas, absurdas ou não. Ademais, possuímos uma cartilha com postulados úteis para solucionar, ou até mesmo evitar, problemas da vida. Exemplos não são escassos: quem nunca atribuiu um período de azar ao “mau-olhado” ou ao gato preto que cruzou o caminho? Quem quer casar não deixa o pobre Santo Antônio de ponta-cabeça? Para ficar rico, nada como semente de romã na carteira? O Brasil é místico.
Essa característica mística que possuímos também está presente na esfera esportiva. O futebol, esporte mais difundido em nosso território, é um dos objetos favoritos da ciência popular. Este é o grande motivo de nossa supremacia dentro das quatro linhas. Nossos conhecimentos sobrenaturais nos dão uma ampla vantagem competitiva em relação aos nossos adversários, meros praticantes do esporte. Explico melhor: enquanto o resto do mundo desenvolve a parte física, aprimora a técnica e treina a tática, nós, brasileiros, não nos diferenciamos. O nosso diferencial está na construção histórica da mística. Isso nos permite nos proteger contra o mal e prever o futuro. Estas duas vantagens já nos colocam em posição relativamente mais favorável. Vamos aos exemplos.

Camisa vence jogo. O amante do futebol se lembrará da “Batalha dos Aflitos”, partida épica entre Grêmio, de Porto Alegre, e Náutico, do Recife. Válido pela série B do campeonato brasileiro, o jogo entre estas duas equipes decidiria quem ascenderia à primeira divisão nacional. Durante a partida, o Grêmio teve quatro (isso mesmo!) jogadores expulsos. O Náutico ainda perdeu dois pênaltis. Davi contra Golias. No final, para êxtase do tricolor gaúcho, o Grêmio venceu por um a zero e ainda levou o título da série B. Como um time com quatro jogadores a menos em campo pode ser superior a um time completo? A mística nos dá uma resposta: o Grêmio é um dos times mais tradicionais do nosso futebol. Sua “camisa pesa”, como diriam alguns. Diante das adversidades, seus jogadores se agigantaram. O Timbu pernambucano sentiu a pressão. Amedrontou-se. Foi a reprodução da “Batalha das Termópilas”. Não importaria o tempo de jogo. Poderia ter durado o dia inteiro, mas com o Grêmio fatalmente vencedor.

Quem não faz, toma. Quantas vezes assistimos ao nosso time do coração perder “gols feitos” durante a partida e, na seqüência, tomar um gol quando menos se espera?

Pênalti que não foi, não entra. Esta máxima do futebol é clássica. Quando o juiz apita uma falta (dentro da área) que não existiu, não devemos ficar preocupados. O destino da bola certamente não é o fundo das redes. Comprovei o postulado neste domingo último, ao assistir ao jogo entre Fluminense e Palmeiras. Em um dado momento da partida, quando o time Alviverde vencia, por um a zero, o time das Laranjeiras, o juiz apita, de forma equivocada, um pênalti para o Flu. De fato, a falta ocorreu, mas fora da área. Com toda a certeza, a torcida palmeirense ficou tensa. Para mim, tensão descabida. Final da partida: Fluminense, zero. Palmeiras, um. E uma exibição de gala do arqueiro palestrino.

Os três pulinhos da sorte. Todo jogador brasileiro tem que dar três pulinhos com o pé direito antes de entrar no gramado. Agindo assim, ele está atraindo sorte para si, sabendo que desempenhará um grande papel durante a partida. Os que não agem desta forma, negam um fato descoberto pelas antigas gerações. É como negar a si próprio. Contudo, mesmo os não-praticantes dos três pulinhos devem possuir algum outro talismã da sorte.

Diante do exposto, surge uma questão devastadora: se somos tão diferentes, por que não somos invencíveis? Por que não ganhamos sempre a Copa do Mundo? A resposta é simples: diante da globalização da modalidade e dos interesses crescentemente financeiros dos nossos jogadores profissionais, nosso lado lúdico, místico e supersticioso está cedendo lugar às ideologias estrangeiras, nas quais não há fantasia. Nossos jogadores deixam o país antes mesmo de consolidarem suas concepções sobrenaturais. O dinheiro desmistifica nosso mundo. Assim, quando não acreditamos que a camisa vence jogo, ela deixa de vencer. Quando não acreditamos nos três pulinhos da sorte, deixamos de contar com ela. Quando não vale mais a máxima do pênalti, a bola começa a entrar. Se deixarmos de acreditar no sobrenatural do futebol, deixaremos de fazer a diferença. Portanto, na ausência das relações não-financeiras, cada vez mais caímos na mesmice dos outros. Não diferentes dos demais, somos passíveis de derrota.

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